As segundas-feiras costumam
ser dias horríveis para muitas pessoas. Principalmente para aquelas que
adorariam que os domingos fossem mais longos e que o fim da noite jamais
chegasse. Entre essas pessoas talvez esteja a figura do cronista de jornal,
aquele que deve estar com seu texto prontinho para que, já no café da manhã da
segunda-feira, o leitor possa se deleitar com as noticias trazidas pelo jornal.
É claro que me refiro aqui, especificamente, àqueles leitores que ainda não abandonaram
de todo sua relação com o folhetim impresso, não desconsiderando que o mesmo
ocorre com o leitor que lê o jornal em outro tipo de suporte. Esse, assim como
eu, provavelmente lê o que lhe interessa já na noite anterior.
O leitor, certamente, não
sabe das peripécias e malabarismo que o cronista às vezes precisa fazer para
entregar seu texto, mesmo em tempos de Internet. E, convenhamos, o leitor não
dá a mínima pra isso. O cronista que se vire, pois para o leitor, é o resultado
final que realmente interessa. Mas o jornal. Ah! O jornal! Houve um tempo em
que o jornal que trazia a crônica de hoje, estaria embrulhando peixe amanhã. Os
tempos mudaram e, hoje, poucas são as pessoas que comeriam peixe embrulhado em
jornal. Mas para onde vai o jornal que carrega aquela crônica que levou um bom
tempo para ser escrita? Vai para os confins da rede e, provavelmente, para as
nuvens. E, como se diz no interior, a nuvem é bem aí!
Raymundo Netto |
Como nem todo mundo acessa a
web e nem sabe o que é essa tal de nuvem, é sempre bom registrar o que se escreve
naquele negócio chamado livro. E é exatamente isso que fez o escritor Raymundo
Netto ao publicar uma seleção das crônicas que, entre os anos de 2007 e 2010,
escreveu para o jornal O Povo. Conforme o próprio autor: “A maior parte dessas
crônicas se desenvolvem a partir de “encontros” com escritores e personalidades
cearenses vivos ou mortos – em literatura isso não faz muita diferença -, em um
exercício intertextual, contextualizados com acontecimentos na cidade de
Fortaleza, palco que serve de frigideira para a maioria dessa omelete”.
A ideia de Raymundo Netto em
escrever suas crônicas a partir de “encontros” com escritores e personalidades
vivos ou mortos da cena fortalezense, faz com que o leitor, juntamente com o
narrador, revisite a Fortaleza, essa cidade que tanto assombra quanto seduz. Essa
mesma cidade quase engolida pelos milhares de buracos que invadem suas ruas, devido a incompetência de seus gestores e pelo seu povo entregue à própria sorte. A
cidade vista pelos olhos (verdes?) de Raymundo Netto é a “prima pobre” da Paris
vista pelos olhos miúdos de Woody Allen, em seu filme Meia-noite em Paris (2011). E aqui tomo a liberdade de apontar uma
aproximação da obra de Netto com a de Allen, no que concerne a uma observável
exaltação do passado em relação ao presente. Sobre a comédia romântica de
Allen, observemos uma das sinopses disponibilizadas na Internet:
Gil
(Owen Wilson) é um escritor e roteirista americano que vai com a noiva Inez e a
família dela à Paris, cidade que idolatra. Ele realiza vários passeios noturnos
e sozinho, quando descobre que, surpreendentemente, ao badalar da meia-noite, é
transportado para a Paris de 1920, época e lugar que considera os melhores de
todos. Nessas "viagens", Gil vai a várias festas onde conhece
inúmeros intelectuais e artistas que admira e que frequentavam a cidade-luz
naquela época. Scott Fitzgerald, Gertrude Stein, Ernest Hemingway, Salvador
Dali dentre outros. Até que tenta acabar o seu romance com Inez, pois se
apaixonou por Adriana (Marion Cotillard), uma bela moça do passado, e é forçado
a confrontar a ilusão de que uma vida diferente (a "época de ouro"
francesa) é melhor do que a atualidade.
O narrador de Raymundo Netto seria o nosso
Gil, um flâneur a caminhar com
atenção pelos mais inusitados espaços da cidade. Nas caminhadas, o narrador
encontra e conversa com Rachel de Queiroz, Francisco Carvalho (Que poeta maravilhoso!), Ana Miranda e
Mário Gomes; entre inúmeros outros. O resultado dessas conversas e andanças é o
livro Crônicas absurdas de segunda (2015),
uma vez que o referido cronista escrevia para o jornal exatamente às segundas. Trata-se
de uma belíssima edição, publicada pelas edições Demócrito Rocha, composta de
trinta e nove crônicas, sendo três inéditas. Há três textos introdutórios,
sendo “Crônicas absurdas”, de Ana Miranda, “Crônicas”, de Sânzio de Azevedo e “Duas
palavras”, do próprio Raymundo Netto explicando a origem, a construção e os
resultados do projeto que acabou por gerar a obra em questão. O livro traz
ainda um “posfácio” escrito por Pedro salgueiro, denominado de “Um dândi
pós-moderno”, além da biografia do autor, bem como as referências bibliográficas.
A lexia “absurda”, no título
da obra de Raymundo Netto, acaba por nos remeter ao Mito de Sísifo - Ensaio sobre o absurdo (1941), de Albert Camus (1913 -1960); bem como ao
teatro do absurdo, de Samuel Beckett (1906 – 1989); especificamente sua peça Esperando Godot, de 1952. Embora sejam “absurdos”
diferentes, as crônicas de Raymundo Netto acabam por dialogar entre si e com o
outro, quando, de uma forma ou outra, discorrem sobre a própria condição humana, tal qual ocorre em Camus e Beckett. A série de crônicas que Netto aqui apresenta, afirma Ana Miranda, tem uma linha
mestra, ou seja, é uma agenda de encontros com fantasmas. De repente o cronista se
depara com algum autor de livros que ele mesmo leu, e não esqueceu. Os seus
fantasmas literários tomam corpo e vida, conversam, zombam, tresvariam,
surpreendem e nos fazem rir, mas às vezes de olhos marejados. Há algo mais
humano, pergunto, e ao mesmo tempo mais absurdo?
Sobre o narrador de Crônicas absurdas de segunda (2015), Ana
Miranda diz:
O
narrador me faz lembrar um senhor de chapéu coco e fraque, muito elegante,
cortês. Entusiasmado e fervoroso, vaga pelas ruas a olhar tudo e conversar com
quem aparece ali. Gosta de conversa. Um narrador carregado de sentimentos, uma
afetividade à flor da pele, e um pouquinho de malícia. Fala num tom de certo
gracejo inocente, aproveitando todos os momentos para chistes e improvisos. É quase
o mesmo narrador do primeiro livro de Netto, Um conto do passado: cadeiras na calçada, romance preciso e admirável,
com jeito de crônica, no qual, enquanto se passa uma história de amor, a cidade
vai se mostrando e se transformando.
O “se mostrar” e o “se
transformar” da cidade, observados pela autora de Semíramis (2014), no romance de Raymundo Netto, também é facilmente
identificável na sua crônica. Essa transformação que se dá com a cidade, também
se dá com seus habitantes-personagens em uma espécie de simbiose. E assim também o
é na relação da personagem de Owen Wilson com a Paris dos anos 20, no Meia-noite em Paris.
Revisitar Fortaleza é sempre
um convite irrecusável. Mais uma vez, e com bastante esmero, o escritor
Raymundo Netto nos lança o convite a partir das suas Crônicas absurdas de segunda (a nosso ver, crônicas de primeira),
tomando ruas, abrindo portas e apresentando gente.
Que a cidade nos seja tão leve quanto uma crônica 'absurda', de Raymundo Netto!
Que a cidade nos seja tão leve quanto uma crônica 'absurda', de Raymundo Netto!
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