Em diferentes regiões do
Brasil se utiliza muito a lexia “demorô”, corruptela de “demorou”, para se
referir a situações que, finalmente aconteceram, mas que deveriam ter
acontecido bem antes. Embora se trate de uma expressão tipicamente brasileira,
provavelmente outras línguas devam ter expressões que sirvam para a mesma
situação. E se assim o for, boa parte do mundo disse “demorô”, hoje, quando
Sara Daniues, secretária permanente da Academia Sueca, anunciou o nome de Bob
Dylan, como o vencedor do prêmio Nobel de Literatura de 2016. Para a referida
Academia, o autor de “Like a Rolling Stone” mereceu o prêmio de 2016 “por ter
criado uma nova expressão poética dentro da grande tradição norte-americana da
canção”.
A Academia sueca poderia ter
dito “qualquer coisa”, como justificativa para premiar Dylan, pois tudo o que
pudesse dizer resvalaria na constatação do óbvio, uma vez que a obra de Bob
Dylan ultrapassa o campo meramente musical, se espalhando pelo campo da
literatura propriamente dita. Em outras palavras, é simplório conceber as
letras do referido artista como “letras”, simplesmente, pois Bob Dylan é, na
verdade, um dos mais relevantes poetas do século XX, destilando sua poesia por
meio da canção. Dessa maneira, assim como Chico Buarque e Belchior, Bob Dylan
rompe os limites dos gêneros literários, produzindo letras que são menos
letras, e mais poemas.
É claro que alguns
pesquisadores, engessados que estão (ou “que são”?), ainda não conseguem (ou
não querem) compreender as relações que se dão entre a música e a poesia. Para
muitos, são coisas que não se pode misturar; sequer aproximar, tendo em vista letra
de música ser algo que se encontra em um plano muito inferior ao da poesia. Dessa
forma, a premiação de Bob Dylan vem mexer com posicionamentos antigos, sólidos
e conservadores a esse respeito. De 2016 em diante, contudo, uma nova maneira
de se conceber a poesia passa a ser indispensável, uma vez que Bob Dylan está
agora, oficialmente, ao lado de T.S. Eliot, Yeats e Wislawa Szymborska; por
exemplo.
Deixemos claro, no entanto,
que não é um Nobel para Dylan que o torna um grande poeta. Na verdade, é
exatamente o contrário. É a qualidade, o alcance e o reconhecimento da sua obra
poética que culminou na premiação. Dylan não precisava de prêmio algum. No
entanto, o reconhecimento de Bob Dylan como merecedor do prêmio Nobel de
Literatura do ano de 2016 aponta também para uma, mesmo que seja aparente e
momentânea, nova perspectiva da Academia sueca em relação a diferentes
manifestações da literatura. Talvez fosse o momento do próprio Prêmio se
reestruturar e admitir que existem muitas formas de representações artísticas
que mereceriam receber um prêmio de tal envergadura, mas que simplesmente não
cabem nas categorias estabelecidas pela Academia.
Ao optar por premiar Dylan,
a Academia acaba por premiar indiretamente todos os trovadores, repentistas, folk singers, professores e artistas que
têm insistido na luta em defesa de uma cultura que possa ser cada vez mais
abrangente e inclusiva, independentemente de língua, rótulo ou gênero.
O Nobel para Bob Dylan acaba
também por ser uma premiação aos poetas da Geração Beat, aos heróis conhecidos
e anônimos da década de 60 e, especialmente, ao poeta e ativista Woody Guthrie,
sem o qual, possivelmente, Robert Zimmerman não teria se tornado Bob Dylan. E, como bem afirmou Leonard Cohen: "dar um Nobel ao Bob Dylan é como dar uma medalha ao Everest por ele ser a montanha mais alta da Terra". Melhor dedução, impossível!
O prêmio Nobel para Bob
Dylan “demorô”, mas veio. Com ele, o mestre de “Blowin in the Wind” e “The
times they are a changing” coroa uma carreira de sucesso, ativismo e poesia que
dificilmente veremos surgir nos próximos cem anos. Por essas e outras razões,
nos alegramos por Bob Dylan, pois descobrimos, baby Blue, que nem tudo está
perdido.
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Esse texto também foi publicado em http://palmaspradoidodancar.blogspot.com.br/2016/10/um-nobel-para-o-poeta-bob-dylan.html
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