Tem-se a impressão
(pode ser apenas impressão) de que a poesia brasileira está devendo a nós,
leitores, um acontecimento, ou seja, sente-se a falta de trabalhos poéticos de
fôlego nas prateleiras das nossas livrarias. Não queremos dizer com isso, que eles
não existam, mas que não têm conseguido chegar ao publico leitor da mesma forma
como os trabalhos em prosa. É claro que há uma série de questões que explicam
por qual razão das coisas se darem como se dão.
Não trataremos dessas questões aqui, mas da poesia que consegue furar o cerco da mesmice editorial e se afirmar enquanto trabalho de altíssima qualidade literária. Nesse caso, falamos especificamente do livro Um útero é do tamanho de um punho (2012), de Angélica Freitas, já na sua terceira reimpressão (2015), pela editora Cosac Naify. Trata-se do seu segundo livro. O primeiro chama-se Rilke Shake, tendo sido publicado pela mesma editora, no ano de 2007. Um útero é do tamanho de um punho já traz na estrutura do título duas referências, que são balizadoras para a compreensão da obra em questão. Embora o tamanho de um útero seja variável, não sendo necessariamente do tamanho de um punho (talvez por essa razão, a poeta tenha usado "um útero" em vez de "o útero").
A imagem do útero, evocada no título do trabalho,
aponta para a parte do corpo da mulher, responsável por gestar a própria vida,
ou seja, a criação. Nesse caso, vida, criação e poesia se misturam sob o
aspecto metafórico do útero. A referência ao punho, por sua vez, pode ser
compreendida como indicativo de força e de resistência, principalmente quando
apontado para ao alto. Assim sendo, é possível deduzir que resistência e força
são naturais e inerentes ao mais íntimo do ser feminino.
Pode-se, inclusive,
afirmar que o livro de Angélica Freitas é feminino, na mais ampla acepção do
termo, por ter como referência poética a figura da mulher. Melhor seria dizer,
das mulheres, uma vez que são inúmeras aquelas que surgem como “eu lírico” nos
diversos poemas que compõem a obra. Contudo, deve-se guardar cautela para não
cair na armadilha ideológica de achar que se trata de uma poesia panfletária,
ativista ou engajada. A poesia de Um
útero é do tamanho de um punho permite uma leitura que comporta tudo isso,
mas que não se reduz ou se limita a isso ou aquilo, propiciando uma amplitude e
uma abertura que podem ser exploradas sob os mais diversos pontos de vista.
O livro está dividido
em sete partes. A primeira chama-se “Uma mulher limpa”, composta de catorze
poemas. A segunda, “Mulher de”, contém dez poemas, enquanto “A mulher é uma
construção” traz sete textos. A quarta parte do livro e que lhe dá nome.
Intitula-se “Um útero é do tamanho de um punho”, indo da página 59 até a página
66, o maior poema do livro. Na sequência, as partes: “3 poemas com auxílio do
Google”, “Argentina” e “O livro do coração dos trouxas”. Além disso, o livro
traz uma nota sobre a autora, bem como uma breve apresentação da obra, de
autoria de Carlito Azevedo.
Angélica Freitas |
Outro aspecto presente
nos poemas da referida obra é a recorrência de referências a escritores. Elizabeth
Bishop, por exemplo, surge no poema “mulher de posses” (p. 34), quando lemos: “...
e se é uma arte perder”. Henry Miller está no poema “Mulher de malandro”
(p.40). Homero é referido no poema “Ítaca” (p.50). Borges e Barthes aparecem em
“metonímia” (p.52) e Frida Khalo, na página 60. Barthes retorna na página 79. Sheherazade
(= She/He+razade) surge na página 88, enquanto Goddard está na página 90.
Além disso, Angélica Freitas
usa e abusa de elementos da cultura pop, demonstrando maestria no uso de tais referências.
Dessa forma, para citarmos apenas algumas, na página 87, encontramos referências
musicais como New Order e Suzanne Vega (Será que a poeta gosta de Luka?). Há
ainda quadrinhos, artes plásticas e outras semioses que, aparentemente
espalhadas e dispersas, constituem uma enorme rede de significações poéticas,
que põem o feminino como leitmotiv da
poesia de Um útero é do tamanho de um
punho. E isso, por si só, já faz da poesia de Angélica Freitas um
acontecimento.
A poesia de Angélica
Freitas permite, como qualquer obra literária, um oceano de interpretações. Nossa
intenção não era fazer uma leitura equivocada. Mas como diz a poeta (p.52): “...
todas as leituras de poesia são equivocadas”. Assim sendo, por qual razão
resistir à tentação do equívoco? Boa leitura!
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