terça-feira, 31 de outubro de 2017

REVIRANDO MEU GUARDA ROUPA E OUTROS LIVROS INFANTIS

Ao contrário do que muita gente pensa, escrever para criança é uma das tarefas mais delicadas a qual um escritor possa se entregar. As exigências são inúmeras e, nenhuma delas, compreende como obrigação que aquele que escreva para a pivetada deva ser pai, mãe, tio ou outro parente qualquer devotado a fazer a criançada feliz. Certamente que se essa aproximação existe, muito melhor para o escritor(a), pois terá certa facilidade em transpor para o papel algo que conhece de perto.

O que um autor de histórias infantis precisa, na verdade, é ter muita imaginação, criatividade e tentar pensar como uma criança. Se sua infância contribuiu para que ele, o autor, tenha vivenciado aventuras em perigosas florestas, corridas de carros com perseguições, fugas inimagináveis de ilhas repletas de piratas, viagens no tempo ou coisas tão interessantes quanto, ai já se tem meio caminho andado. Agora, passar tudo isso para o papel já são outros quinhentos, pois produzir literatura infantil é uma atividade de alto risco, tendo em vista que o cliente é extremamente exigente. Triste do autor de histórias infantis que achar que pode, com meia dúzia de palavras, ludibriar o coração e a mente de uma criança.

A literatura infantil, no Brasil, é devedora de respeito e eterno agradecimento a pelo menos dois grandes mestres: Ziraldo e Mauricio de Sousa. É claro que entre Flicts, Menino maluquinho e Turma da Mônica, muita água já rolou por debaixo da ponte das histórias infantis produzidas no país. Mesmo assim, esses trabalhos continuam como referências clássicas, encantando uma geração após a outra. E o que fizeram Ziraldo e Mauricio de Sousa para alcançar esse estágio? Os dois grandes autores aprenderam como encantar o coração de uma criança, passando a contar histórias que fazem com que o pequeno leitor acesse mundos diferentes sem precisar sair do sofá.

Na Inglaterra tem outro mágico encantador de crianças que, tal qual Ziraldo e Mauricio de Sousa, sabe muito bem como hipnotizar uma criança, contando uma bela história. Neil Gaiman é, sem sombra de dúvidas, um dos maiores contadores de histórias da atualidade. Suas histórias (como a Menina iluminada, por exemplo), aliadas aos traços dos profissionais com quem tem trabalhado, formam a mais perfeita tradução do que deva ser a constituição de uma história infantil. Mas, voltando ao hemisfério sul, percebemos uma nova geração de autores que em praticamente nada deixam a dever aos grandes mestres das histórias infantis.

Da Argentina, por exemplo, e já devidamente traduzido para o português brasileiro e ditado pela SUR Livro, tem-se a “Coleção Antiprincesas”, que traz um proposta diferenciada ao transformar em história infantil a biografia de grandes nomes da História. Dessa forma, de maneira bastante didática, a criança pode entrar em contato com a história de vida de Júlio Cortázar, Violeta Parra, Clarice Lispector e Frida Kahlo, por exemplo. As histórias são, como já se diz na capa dos livros, “para meninos e meninas”. Um bom exemplo do que afirmamos, é o livro Frida Kahlo para meninos e meninas (2015), com história de Nadia Fink e ilustrações de Pitu Saá.


Do Brasil, gostaria de chamar a atenção para o trabalho de André Neves, especificamente uma história maravilhosa chamada Lino, de 2010, com reimpressão em 2013. Em Lino, Neves é ao mesmo tempo o autor do texto e das ilustrações. O referido trabalho foi publicado pela editora Callis, passando a compor a Coleção Itaú de livros infantis. Trata-se da história de amizade entre o porco Lino e a coelha Lua. Sem mais spoilers para o momento. A história de André Neves é mágica pura!

De leitura imperdível, chamo a atenção para Revirando meu guarda roupa (2017), de Fernanda de Façanha. O trabalho foi publicado pela editora Caminhar e foi ilustrado por Eduardo Azevedo. A história que Fernanda conta parte daquelas coisas que todos nós guardamos em algum cantinho das nossas memórias, como as brincadeiras vivenciadas na infância, quando arriscamos nossos primeiros voos.

A autora afirma que “amigos são como tesouros. Eles estão gravados nas roupas e são lembrados no coração de quem viveu intensamente esses momentos de descobertas, desafios e aprendizagem”. Por aí, temos uma ideia de como se dará a narrativa. Saber e viver é o lema, nos diz a autora.

Os livros e autores que apresentamos aqui, nessa brevíssima resenha, não constituem nem um milésimo do que se produz de literatura infantil mundo afora. E nem é essa nossa pretensão. São, na verdade, apenas algumas das nossas leituras nesse campo. Ficam aqui, então, as dicas da boa literatura infantil que tem sido produzida por aí.

Grande abraço!

terça-feira, 17 de outubro de 2017

PAPE SATÀN ALEPPE: CRÔNICAS DE UMA SOCIEDADE LÍQUIDA, DE UMBERTO ECO

Umberto Eco (1932 – 2016) é, sem sombra de dúvidas, um dos maiores autores do século XX e, na mudança para o século XXI, manteve sua posição entre os grandes. Autores magistrais, como Eco, costumam se “aventurar” facilmente pelos mais variados campos do conhecimento, tanto na produção de textos de ficção quanto de não ficção. Basta darmos uma olhadinha básica na produção do autor de O nome da rosa (1980), para constatarmos a variedade da sua produção. Os homens, como sabemos, morrem. Contudo, suas obras permanecem.   Eco é desses.

Falamos aqui sobre a obra póstuma de Umberto Eco, especificamente do livro Pape Satàn Aleppe: cronache di uma societá liquida, o qual foi publicado originalmente no ano de 2016, na Itália, pela editora La nave di Teseo, tendo sido traduzido para o português brasileiro por Eliana Aguiar e publicado pela editora Record no ano de 2017, com o título Pape Satàn Aleppe – crônicas de uma sociedade líquida. O referido livro e mais o Come viaggiare com um salmone (“Como viajar com um salmão”, ainda sem tradução para o português brasileiro) chegaram às livrarias uma semana após a morte do autor.

Além da incontestável qualidade do texto de Eco, já nos chama de início a atenção o título que o autor escolheu para batizar seu trabalho. A primeira parte do título é uma reprodução da frase que é dita por Plutão ao notar a entrada do poeta Dante Alighieri e Virgílio no quarto círculo do inferno, registrado na Divina Comédia (Inferno, VII, I). Na introdução do livro Pape Satàn Aleppe, Umberto Eco ressalta que, embora muitos pesquisadores tenham tentado encontrar um sentido para a frase dita por Plutão, concluiu-se que não há nenhum sentido preciso para ela, contribuindo apenas para uma confusão de ideias. A outra parte do título,  por sua vez, é uma alusão à ideia de modernidade ou sociedade “líquida” desenvolvida pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman (1925 – 2017). A união dessas duas expressões serviram muito bem ao tipo de texto, a crônica, assim como a profusão de temáticas abordadas por Eco ao longo do referido trabalho. Diz ele: “Achei, portanto, oportuno usá-las como título desta coletânea que, menos por culpa minha do que por culpa dos tempos, é desconexa, vai do galo ao asno - como diriam os franceses -  e reflete a natureza líquida destes quinze anos” (Eco, 2017, p.8).

Os quinze anos aos quais Eco se refere é uma alusão ao período no qual estão compreendidas as crônicas constantes de Pape Satàn Aleppe. São crônicas que foram selecionadas pelo autor, a partir daquelas que foram publicadas por ele na coluna La Bustina di Minerva, na revista L’Espresso, a qual começou a ser publicada ainda no ano de 1985. Algumas das crônicas desse período já tinham aparecido no seu Segundo diário mínimo, de 1992. Outras compuseram o livro La Bustina di Minerva, que cobriu as crônicas publicadas até o início do ano 2000. Outros textos também foram publicados em A passo di gambero, de 2006. Assim, pelos cálculos do próprio Eco, entre 2000 e 2015, calculando 26 Bustinas por ano, ele teria escrito aproximadamente quatrocentas crônicas, o que o levou a considerar a publicação da qual tratamos aqui.

O livro se inicia com uma crônica denominada de “a sociedade líquida”, na qual Eco discorre sobre as ideias de Bauman acerca daquilo que caracteriza uma sociedade líquida. No parágrafo final da crônica, Eco pergunta: “Existe um modo de sobreviver à liquidez?”. Responde ele: “Existe e é justamente perceber que vivemos numa sociedade líquida que, para ser compreendida e talvez superada, exige novos instrumentos. Mas o problema é que a política e grande parte da intelligentsia ainda não entenderam o alcance do fenômeno”. E conclui: “Por ora, Bauman continua a ser uma “vox clamantis in deserto”.

No que diz respeito à maneira como o  livro está estruturado, tem-se catorze blocos contendo, cada um, números variados de crônicas. Assim sendo, o primeiro bloco chama-se “A passo de caranguejo” (p.13) e contém cinco crônicas. Na sequência, tem-se: “Ser vistos” (p.27, seis crônicas), “Os velhos e os jovens” (p.43, onze crônicas), “On-line” (p.69, catorze crônicas), “Sobre celulares” (p.101, cinco crônicas), “Sobre as conspirações” (p.115, seis crônicas), “Sobre os mass media”(p. 131, vinte e cinco crônicas), “Várias formas de racismo” (p. 185, quinze crônicas), “Sobre o ódio e a morte” (p.221, quatro crônicas), “Entre religião e filosofia” (p.231, vinte crônicas), “A boa educação” (p.275, nove crônicas), “Sobre livros e outras coisas mais” (p.297, dezenove crônicas), “A quarta Roma” (p.339, dezoito crônicas), “Da estupidez à loucura” (p.379, dezoito crônicas).

Cada uma das crônicas constituintes da obra em questão trata, na maioria das vezes, de assuntos que costumam, por serem de característica fugaz, ser tratados por cronistas e estampadas em um cantinho qualquer dos jornais que ainda resistem ao completo desaparecimento. A crônica, na sua simplicidade e agudeza, tantas vezes considerada a "prima pobre da literatura", se apresenta como gênero ideal para a exposição não apenas do efêmero, mas do permanente, sendo espaço tanto para o popular quanto para o erudito. Em síntese, a crônica é capaz de abrigar todo e qualquer tipo de questionamento, expondo-o de maneira direta, clara, leve e objetiva. Consciente dessa questão, Umberto Eco discorre em Pape satàn aleppe: crônicas de uma sociedade líquida, sobre temáticas que tratam, por exemplo, da questão política da Itália sob o governo de Berlusconi, dos imigrantes que batem à porta da Europa, de Harry Potter, da religião, da "síndrome da selfie", do ser humano escravizado pelo aparelho de celular, dos programas estúpidos da televisão, de livros, e dos relacionamentos humanos, entre inúmeros outros assuntos recorrentes na sociedade líquida. 

Ao optar por tratar das questões do nosso tempo por intermédio do gênero crônica, Eco foi bastante assertivo, tendo em vista que a crônica, na sua essência, é aquele texto de caráter efêmero capaz de tecer como matéria de sua constituição, desde os assuntos mais simples e, aparentemente desinteressantes e banais até as mais aprofundadas reflexões político-existenciais. Ao ter feito tal opção, até mesmo por ser essa a exigência das Bustinas, Eco conseguiu atrair como leitores para seus textos, não apenas aqueles já conhecedores de outros trabalhos seus, mas novos e diferentes leitores capazes de, pela leveza do gênero  crônica, se aproximar de discussões de cunho político, religioso e cultural apresentadas pelo autor por meio de suas convidativas crônicas.


A obra de Umberto Eco ainda vai reverberar por muito tempo, uma vez que é ampla e diversa, sendo capaz de atrair a atenção de todos aqueles leitores interessados em tentar entender o outro, a vida, o mundo. Assim sendo, para aqueles que pretendem se iniciar na literatura de Umberto Eco, começar pelas crônicas de Pape Satàn Aleppe: crônicas de uma sociedade líquida é uma boa maneira de iniciação. Para aqueles que já o conhecem de outros textos, não se decepcionarão com o que ali está posto, pois as crônicas de Pape Satàn Aleppe nos ensinam "como viajar com Umberto eco", uma vez que lá há Umberto Eco para todos os gostos. 

Somente os grandes mestres alcançam tal feito. 

Boa leitura!