domingo, 14 de abril de 2019

TEMPOS DE CIGARRO SEM FILTRO, DE JOSÉ MASCHIO


São muitos os aspectos que contribuem para que uma obra literária se mantenha em consonância com seu tempo. Depois de escrita, a obra ganha pernas e anda. Sai para a vida tal qual o filho que não criamos para nós, mas para o mundo. Assim, cada obra está dentro de um contexto sócio-histórico e seu nível de compreensão dependerá das potencialidades interpretativas do leitor.

Tempos de cigarro sem filtro (2017), de José Maschio, publicado pela editora Kan, surge num contexto histórico bastante caro para a sociedade brasileira. No ano que antecedeu sua publicação, uma clara ruptura democrática se deu no país, seguindo praticamente o mesmo modus operandi que implantou a ditadura no Brasil de 1964. Os resultados do golpe de 2016 ainda resvalam na sociedade brasileira, com instituições travadas, autoritarismo, perseguições, ataques à imprensa e desprezo pelos direitos humanos. Ao caos estabelecido se juntaram elementos novos, como a pós-verdade e as chamadas fake News

Em resumo, os “tempos de cigarro sem filtro” ameaçam voltar. Os personagens, no entanto, são outros. Já não se tem o “gordo ministro a anunciar o milagre econômico brasileiro” e nem o” rosto sombrio e sério do general Carrascoazul anunciando medidas contra terríveis terroristas e comunistas”. Corpos já não são encontrados no rio Paranapanema, mas os opositores são constantemente ameaçados com a ponta da praia. Impunes. Insolentes. Juízes sabem.

O romance de José Maschio está organizado em 31 capítulos e conta com uma breve apresentação (nas orelhas) de Luiz Taques. A linguagem é fluida e o texto, seguindo o estilo jornalístico, é constituído de períodos curtos. Dessa forma, o autor coloca em sua escritura a brevidade e a rapidez da comunicação, comuns aos tempos da repressão. O uso que Maschio faz da linguagem nos permite perceber aproximações com os grandes mestres da narrativa curta, como Ernest Hemingway, Dalton Trevisan e João Antonio. 

É por intermédio da vida do personagem Ruço (não Russo), que o narrador reconstrói um dos períodos mais violentos da vida nacional. Por sua narrativa, passam a selvageria do Estado contra aqueles que considera inimigos, a perseguição, a dor, a tortura, a perda, a morte. No período no qual a narrativa de Maschio se insere, lê-se Sete Palmos de Terra e um Caixão, de Josué de Castro. Na atual conjuntura, lê-se o “guru da Virgínia” e outras absurdetes (ou seriam “olavetes”?). Os desavisados  e mal intencionados falam, mesmo sem ter lido Michael Young, em meritocracia. Em “tempos de cigarro sem filtro” reina a ignorância. Sobre isso, lê-se:


A ignorância é a mãe de todas as misérias e mazelas do mundo. O pai tinha dito isso. Lembrava Ruço. E sentiu-se ignorante. Queria entender essa miséria toda, a contrastar com a beleza de cartão postal da cidade, mas não atinava uma explicação satisfatória. No Sul meninos branquelos, como ele tinha sido na infância, eram engraxates. Nos pardieiros, e Ruço já se enturmara, as prostitutas eram loiras, brancas (...), mas o que incomodava Ruço eram as meninas. À noite, elas apareciam pelos bares do centro, crianças ainda, loirinhas, lindas. A mendigar moedas e oferecer sexo barato (...). (MASCHIO, 2017:95)


O romance de José Maschio, registre-se, é ficção. Não é um romance-reportagem, nem muito menos um ensaio de sociologia. Tempos de cigarro sem filtro é ficção e o autor não pode ser "culpado" se aquilo que conta guarda semelhanças com nomes, pessoas ou acontecimentos reais. Qualquer aproximação é mera coincidência. Na narrativa, há um delegado que “prende e arrebenta” e que sonha com Brasília. “Era meticuloso. Não podia deixar brechas (...). Visitou o juiz. Judiciário sabujo. Pediu. Não pediu, mandou. Mandava como delegado. Imagina como deputado eleito?” (p.99). A ficção, prezado leitor, tem dessas coisas!

José Maschio
Em Tempos de cigarro sem filtro (2017), Ruço nada mais é do que uma pequena peça na grande “máquina de triturar carnes” do Sistema. Impedido de viver dignamente, “o máximo que Ruço sentia era rancor. Estava abraçado ao seu rancor” (p.122). Em João Antonio é Abraçado ao meu rancor, de 1986. Ruço, sabemos pelo narrador, era “afinado na arte de chutar tampinhas”. E eis mais um intertexto: "Afinação da arte de chutar tampinhas", conto de João Antonio do livro Malagueta, Perus e Bacanaço (1963).


Como dito, o livro de José Maschio foi publicado no ano de 2017, mas poderia ter sido publicado ontem. Os tempos de cigarro sem filtro que acreditávamos terem ido para sempre, ameaçam voltar com toda sua brutalidade. E já nos apavora, como diz a canção, “ver emergir o monstro da lagoa”. Neste contexto, muitos já se sentem como o personagem Polska, exilados dentro de seu próprio país. 

De atualidade surpreendente, a narrativa de José Maschio é leitura indispensável para se compreender aquilo que primeiro se dá como tragédia, mas que depois vem como farsa. 

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