São muitos os aspectos
que contribuem para que uma obra literária se mantenha em consonância com seu
tempo. Depois de escrita, a obra ganha pernas e anda. Sai para a vida tal qual o
filho que não criamos para nós, mas para o mundo. Assim, cada obra está dentro de um
contexto sócio-histórico e seu nível de compreensão dependerá das potencialidades
interpretativas do leitor.
Tempos
de cigarro sem filtro (2017), de José Maschio, publicado pela
editora Kan, surge num contexto histórico bastante caro para a sociedade
brasileira. No ano que antecedeu sua publicação, uma clara ruptura democrática se
deu no país, seguindo praticamente o mesmo modus
operandi que implantou a ditadura no Brasil de 1964. Os resultados do golpe
de 2016 ainda resvalam na sociedade brasileira, com instituições travadas,
autoritarismo, perseguições, ataques à imprensa e desprezo pelos direitos
humanos. Ao caos estabelecido se juntaram elementos novos, como a
pós-verdade e as chamadas fake News.
Em resumo, os “tempos de cigarro sem filtro” ameaçam voltar. Os personagens, no
entanto, são outros. Já não se tem o “gordo ministro a anunciar o milagre econômico
brasileiro” e nem o” rosto sombrio e sério do general Carrascoazul anunciando
medidas contra terríveis terroristas e comunistas”. Corpos já não são encontrados
no rio Paranapanema, mas os opositores são constantemente ameaçados com a ponta da praia. Impunes.
Insolentes. Juízes sabem.
O romance de José Maschio
está organizado em 31 capítulos e conta com uma breve apresentação (nas
orelhas) de Luiz Taques. A linguagem é fluida e o texto, seguindo o estilo
jornalístico, é constituído de períodos curtos. Dessa forma, o autor coloca em sua escritura a brevidade e a rapidez da comunicação, comuns aos tempos da repressão. O uso que
Maschio faz da linguagem nos permite perceber aproximações com os grandes mestres da narrativa curta, como Ernest
Hemingway, Dalton Trevisan e João Antonio.
É por intermédio da vida do personagem Ruço (não Russo), que o narrador reconstrói um dos períodos mais violentos da vida nacional. Por sua narrativa, passam a selvageria do Estado contra aqueles que considera inimigos, a perseguição, a dor, a tortura, a perda, a morte. No período no qual a narrativa de Maschio se insere, lê-se Sete Palmos de Terra e um Caixão, de Josué de Castro. Na atual conjuntura, lê-se o “guru da Virgínia” e outras absurdetes (ou seriam “olavetes”?). Os desavisados e mal intencionados falam, mesmo sem ter lido Michael Young, em meritocracia. Em “tempos de cigarro sem filtro” reina a ignorância. Sobre isso, lê-se:
É por intermédio da vida do personagem Ruço (não Russo), que o narrador reconstrói um dos períodos mais violentos da vida nacional. Por sua narrativa, passam a selvageria do Estado contra aqueles que considera inimigos, a perseguição, a dor, a tortura, a perda, a morte. No período no qual a narrativa de Maschio se insere, lê-se Sete Palmos de Terra e um Caixão, de Josué de Castro. Na atual conjuntura, lê-se o “guru da Virgínia” e outras absurdetes (ou seriam “olavetes”?). Os desavisados e mal intencionados falam, mesmo sem ter lido Michael Young, em meritocracia. Em “tempos de cigarro sem filtro” reina a ignorância. Sobre isso, lê-se:
A ignorância é a mãe de todas as
misérias e mazelas do mundo. O pai tinha dito isso. Lembrava Ruço. E sentiu-se
ignorante. Queria entender essa miséria toda, a contrastar com a beleza de
cartão postal da cidade, mas não atinava uma explicação satisfatória. No Sul
meninos branquelos, como ele tinha sido na infância, eram engraxates. Nos
pardieiros, e Ruço já se enturmara, as prostitutas eram loiras, brancas (...),
mas o que incomodava Ruço eram as meninas. À noite, elas apareciam pelos bares
do centro, crianças ainda, loirinhas, lindas. A mendigar moedas e oferecer sexo
barato (...). (MASCHIO, 2017:95)
O
romance de José Maschio, registre-se, é ficção. Não é um romance-reportagem,
nem muito menos um ensaio de sociologia. Tempos
de cigarro sem filtro é ficção e o autor não pode ser "culpado" se aquilo que
conta guarda semelhanças com nomes, pessoas ou acontecimentos reais. Qualquer
aproximação é mera coincidência. Na narrativa, há um delegado que “prende e
arrebenta” e que sonha com Brasília. “Era meticuloso. Não podia deixar brechas
(...). Visitou o juiz. Judiciário sabujo. Pediu. Não pediu, mandou. Mandava
como delegado. Imagina como deputado eleito?” (p.99). A ficção, prezado leitor, tem dessas
coisas!
José Maschio |
Em
Tempos de cigarro sem filtro (2017),
Ruço nada mais é do que uma pequena peça na grande “máquina de triturar carnes”
do Sistema. Impedido de viver dignamente, “o máximo que Ruço sentia era rancor.
Estava abraçado ao seu rancor” (p.122). Em João Antonio é Abraçado ao meu rancor, de 1986. Ruço, sabemos pelo narrador, era “afinado
na arte de chutar tampinhas”. E eis mais um intertexto: "Afinação da arte de chutar tampinhas", conto de João Antonio do livro Malagueta, Perus e Bacanaço (1963).
Como
dito, o livro de José Maschio foi publicado no ano de 2017, mas poderia ter
sido publicado ontem. Os tempos de cigarro sem filtro que acreditávamos terem
ido para sempre, ameaçam voltar com toda sua brutalidade. E já nos apavora, como diz a canção, “ver
emergir o monstro da lagoa”. Neste contexto, muitos já se sentem como o personagem Polska, exilados dentro de seu próprio país.
De atualidade surpreendente, a narrativa de José Maschio é leitura indispensável para se compreender aquilo que primeiro se dá como tragédia, mas que depois vem como farsa.
De atualidade surpreendente, a narrativa de José Maschio é leitura indispensável para se compreender aquilo que primeiro se dá como tragédia, mas que depois vem como farsa.
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