E a cidade, o que é? Para
mim pode ser uma coisa, para o leitor, outra. Para um poeta, ainda outra e mais
outra, dependendo de quem entrar na conversa. Cada olhar percebe a cidade de
forma diferente. Muitas vezes é possível ver, na cidade, o que quase ninguém
vê. Há, na cidade, o que se esconde e o que se dá aos olhos. E é assim que
Marco Polo fala ao grande Kublai Khan das cidade que visitou, nas narrativas
constituintes do livro As cidades
invisíveis (1972), de Ítalo Calvino.
As cidades de Calvino têm
nomes de mulheres. Cada uma de suas cidades possuem características que são
apenas suas. Características que as tornam únicas, belas e invejáveis. A cidade
é, na narrativa de Calvino, um símbolo que nos remete, como faz com o próprio
autor, à reflexões, experiências e conjecturas. De todas as cidades constantes
na referida narrativa, nos chama particular atenção a cidade de Tecla, que se
constrói constantemente sem jamais se concluir, sendo esse seu projeto de
existência.
Partimos das cidades
invisíveis de Calvino, para apresentarmos uma breve análise da poesia que nos é
apresentada pelo poeta Maílson Furtado (vencedor do Prêmio Jabuti de Poesia, de
2018) no seu À Cidade (2017). O livro
está organizado em quatro partes, que podem ser compreendidas como quatro grandes
poemas que se entrelaçam e dialogam em simbiose. A primeira parte chama-se “Presente”
(p. 9 – 20), a segunda, “Pretérito” (p. 21 – 36), a terceira é denominada de “Pretérito
mais-que-perfeito” (p. 37 – 50), enquanto a quarta parte chama-se “Futuro do
pretérito” (p. 51 – 61). O livro traz um texto de Oswald Barroso (nas “orelhas”)
e o posfácio “a cidade pelo “arquivo dos pés” (p. 63 – 69), de Décio Braúna. A
última página do livro (p.70) traz os dados biobliográficos do autor.
A estrutura escolhida por
Furtado para a organização do seu À Cidade
conduz o leitor pelas ruas e pelo cotidiano de uma cidade que, assim como
poderia ser Varjota, no interior do Ceará, poderia ser qualquer outra cidade
(Campo Grande, Santa Cruz, Sinimbu...). Ao contrário do ocorre na narrativa de
Calvino, a poesia de Maílson Furtado não parece tratar de nenhuma cidade
invisível, mas de uma das muitas cidades observáveis no Brasil. Claro que a
poesia em questão não trata das grades metrópoles, daquelas que engolem o ser
humano e o cospe como se não fosse mais que uma bagaço, um nada. A poesia de
Furtado, pelo contrário, deita olhos sobre as cidades que ainda acordam com o
galo e dormem quando se apagam as luzes dos postes. A máxima “fale de sua
aldeia”, de Tolstoi, é levada ao pé da letra pelo poeta cearense, quando traz
para seus versos o velho rio Acaraú (“... e tudo vale para namorar o acaraú ...”),
os meninos, os mosquitos, o quintal, os cachorros, as cacimbas, as cadeiras na
calçada e todos os elementos que constituem a paisagem de uma pequena cidade de
um interior qualquer, onde, como já havia dito Drummond, tudo passa devagar.
Os poemas que compõem a
obra de Maílson Furtado são dedicados à cidade “e aos que nunca dedicarei nada”,
dedicou o poeta. O uso dos tempos verbais como títulos de cada uma das quatro
partes do livro servem como marcação da maneira como o tempo se dá na cidade,
objeto da poesia do autor. Assim, “tudo sai”, “a noite vai”, “a noite adentra”,
“o poste acende”, “noutro dia/vem outro sol”, “a cidade acorda”, “a manhã deságua”,
“a vida segue”.
E a cidade, o que é?
Maílson Furtado |
Como um imenso e belo monstro a se metamorfosear dia e noite, a cidade move-se lentamente, mas também descansa. Do topo de uma colina imaginária, o eu lírico observa sua transmutação. Às vezes desce, caminha por suas ruas, por seu dorso, brinca com os meninos, se lacera, se desvirgina, mas a cidade não se define.
Jáder de Carvalho, José
Alcides Pinto e Francisco Carvalho são poetas cearenses/universais que, entre
outros, também foram telúricos e cantaram a cidade, suas cidades, em versos de
alta qualidade poética . Contudo, depois de um longo período de estagnação, sem
que aparecesse uma grande poesia em terras de Alencar, eis que surgem os versos
de Maílson Furtado que, tal qual um Marco Polo, apresenta aos leitores a cidade
transformada em poesia. Para concebê-la, no entanto, é necessário acompanhar a
imaginação do poeta e tirar os pés do lugar-comum, pois “... a cidade é uma
fotografia / que nunca é a mesma / uma hoje / outra amanhã...”, tal qual Tecla, de
Calvino. À Cidade (2017), de Maílson
Furtado já pode ser considerado um acontecimento poético no âmbito da
literatura brasileira. Da cidade, dela mesma, não sei.
Maílson Furtado,
acompanhado dos poetas Alan Mendonça, Bruno Paulino, Dércio Braúna e Renato
Pessoa, participa do trabalho intitulado Cinco
inscrições da mortalidade (2018). Maílson Furtado também é autor de Sortimento (2012), Conto a Conto (2013), e Versos Pingados, de 2014.
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