Texto de 17 de janeiro de 1997,
extraído de um dos quase cem cadernos deixados pelo autor de Formação da Literatura Brasileira
Foto: Cristiano Mascaro_2017 |
Morto,
fechado no caixão, espero a vez de ser cremado. O mundo não existe mais para
mim, mas continua sem mim. O tempo não se altera por causa da minha morte, as
pessoas continuam a trabalhar e a passear, os amigos misturam alguma tristeza
com as preocupações da hora e lembram de mim apenas por intervalos. Quando um
encontra o outro começa o ritual do “veja só”, “que pena”, “ele estava bem
quando o vi a última vez”, “também, já tinha idade”, “enfim, é o destino de
todos”.
Os
jornais darão notícias misturadas de
acertos e erros e haverá informações desencontradas, inclusive dúvida quanto à
naturalidade. Era mineiro? Era carioca? Era paulista? É verdade que estudou na
França? Ou foi na Suíça? O pai era rico? Publicou muitos livros de pequena tiragem
na maioria esgotados. Teve importância como crítico durante alguns anos, mas
estava superado havia tempo. Inclusive por seus ex-assistentes Fulano e
Beltrano. Os alunos gostavam das aulas dele, porque tinha dotes de comunicador.
Mas o que tinha de mais saliente era certa amenidade de convívio, pois sabia
ser agradável com pobres e ricos. Isso, quando se conseguia encontrá-lo, porque
era esquivo e preferia ficar só, principalmente mais para o fim da vida. Uns
dizem que era estrangeirado, outros que pecava por nacionalismo. Era de
esquerda mas meio incoerente e tolerante demais. Militava pouco e no PT
funcionou sobretudo como medalhão. Aliás, há quem diga que teve jeito de medalhão
desde moço. Muito convencional. Mas é
verdade que fugia da publicidade, recusava prêmios e medalhas quando podia e
não gostava de homenagens. Contraditório, como toda a gente. O fato é que havia
em torno dele muita onda, e chegou-se a inventar que era uma “unanimidade
nacional”. No entanto, foi sempre atacado, em artigos, livros, declarações, e
contra ele havia setores de má vontade, como é normal. Enfim, morreu. Já não
era sem tempo e que a terra lhe seja leve.
Mas o que
foi leve não foi a terra pesada, estímulo dos devaneios da vontade. Foi o fogo
sutil, levíssimo, que consumiu a minha roupa, a minha calva, os meus sapatos,
as minhas carnes insossas e os meus ossos frágeis. Graças a ele fui virando
rapidamente cinza, posta a seguir num saquinho de plástico com o meu nome, a
data da morte e a da cremação. Enquanto isso, havia outros seres que pensavam
em mim com uma tristeza de amigos mudos: os livros.
De vários
cantos, de vários modos, a minha carcaça que evitou a decomposição por meio da
combustão suscita o pesar dos milhares
dos milhares de livros que foram meus e de meus pais, que conheciam o tato da
minha mão, o cuidado do meu zelo, a atenção com que os limpava, mudava de
lugar, encadernava, folheava, doava em blocos para serviço de outros. Livros
que ficavam em nossa casa ou se espalhavam pelo mundo, na Faculdade de Poços,
na de Araraquara, na Católica do Rio, na Unicamp, na USP, na Casa de Cultura de
Santa Rita, na ex-Economia e Humanismo, além dos que foram furtados e sabe Deus
onde estão - todos sentindo pena do amigo se desfazer em mero pó e lembrando os
tempos em que viviam com ele, anos e anos a fio. Então, dos recantos onde
estão, em estantes de ferro e de madeira, fechadas ou abertas, bem ou maltratados,
usados ou esquecidos, eles hão de chorar lágrimas invisíveis de papel e de
tinta, de cartonagem e percalina, de couro de porco e pelica, de couro da
Rússia e marroquim, de pergaminho e pano. Será o pranto mudo dos livros pelo
seu amigo pulverizado que os amou desde menino, que passou a vida tratando
deles, escolhendo para eles o lugar certo, removendo-os, defendendo-os dos
bichos e até os lendo. Não todos, porque uma vida não bastaria para isso e
muitos estavam além da sua compreensão; mas milhares deles. Na verdade, ele os
queria mais do que como simples leitura. Queria-os como esperança de saber,
como companhia, como vista alegre, como pano de fundo da vida precária e sempre
aquém. Por isso, porque os recolheu pelo que eram, os livros choram o amigo que
atrasava pagamentos de aluguel para comprá-los, que roubava horas ao trabalho
para procurá-los, onde quer que fosse: nas livrarias pequenas e grandes de
Araraquara ou Catanduva, de Blumenau ou João Pessoa, de Nova York ou New Haven;
nos sebos de São Paulo, do Rio, de Porto Alegre; nos buquinistas de Paris e nos
alfarrabistas de Lisboa, por toda parte onde houvesse papel impresso à venda. O
amigo que, não sendo Fênix, não renascerá das cinzas a que está sendo reduzido,
ao contrário deles, que de algum modo viverão para sempre.
CANDIDO, Antonio. “O pranto dos
livros”. In: Revista Piauí. N. 145, ano 13, outubro de 2018. P.50-51.
Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/materia/o-pranto-dos-livros/
Mais: O "pranto mudo dos livros" de Antonio Candido.
https://www.unicamp.br/unicamp/ju/noticias/2018/11/29/o-pranto-mudo-dos-livros-de-antonio-candido
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