Jair acordou a meio da noite. Mandara colocar uma cama dentro do closet
e era ali que dormia. Durante o dia tirava a cama, instalava uma secretária e
recebia os filhos, os ministros e os assessores militares mais próximos.
Alguns estranhavam. Entravam tensos e desconfiados no
armário, esforçando-se para que os seus gestos não traíssem nenhum nervosismo.
Interrogado a respeito pela Folha de São Paulo, o deputado Major Olimpio, que
chegou a ser muito próximo de Jair, tentou brincar: “Não estou sabendo, mas não
vou entrar em armário nenhum. Isso não é hétero.” Michelle, que também se
recusava a entrar no armário, fosse de dia ou de noite, optou por dormir num
outro quarto do Palácio da Alvorada.
Aliás, o edifício já não se chamava mais
Palácio da Alvorada. Jair oficializara a mudança de nome: “Alvorada é coisa de
comunista!” — Esbravejara: “Certamente foi ideia desse Niemeyer, um
esquerdopata sem vergonha.”
O edifício passara então a chamar-se Palácio
do Crepúsculo. O Presidente tinha certa dificuldade em pronunciar a palavra,
umas vezes saía-lhe grupúsculo, outras prepúcio, mas achava-a sólida, máscula,
marcial. Ninguém se opôs.
Naquela noite, pois, Jair Messias Bolsonaro
despertou dentro de um closet, no Palácio do Crepúsculo, com uma gargalhada
escura rompendo das sombras. Sentou-se na cama e com as mãos trêmulas procurou
a glock 19, que sempre deixava sob o travesseiro.
— Largue a pistola, não vale a pena!
A voz era rouca, trocista, com um leve sotaque baiano.
Jair segurou a glock com ambas as mãos, apontando-a para o intenso abismo à sua
frente:
— Quem está aí?
Viu então surgir um imenso veado albino, com
uma armação incandescente e uns largos olhos vermelhos, que se fixaram nos dele
como uma condenação. Jair fechou os olhos. Malditos pesadelos.
Vinha tendo pesadelos há meses, embora fosse a primeira
vez que lhe aparecia um veado com os cornos em brasa. Voltou a abrir os olhos.
O veado desaparecera. Agora estava um índio velho à sua frente, com os mesmos
olhos vermelhos e acusadores:
— Porra! Quem é você?
— Tenho muitos nomes. — Disse o velho. — Mas
pode me chamar Anhangá.
— Você não é real!
— Não?
— Não! É a porra de um sonho! Um sonho mau!
O índio sorriu. Era um sorriso bonito, porém
nada tranquilizador. Havia tristeza nele. Mas também ira. Uma luz escura
escapava-lhe pelas comissuras dos lábios:
— Em todo o caso, sou seu sonho mau. Vim para
levar você.
— Levar para onde, ô paraíba? Não saio daqui,
não vou para lugar nenhum.
— Vou levar você para a floresta.
— Já entendi. Michelle me explicou esse
negócio dos pesadelos. Você é meu inconsciente querendo me sacanear. Quer saber
mesmo o que acho da Amazónia?! Quero que aquela merda arda toda! Aquilo é só
árvore inútil, não tem serventia. Mas no subsolo há muito nióbio. Você sabe o
que é nióbio? Não sabe porque você é índio, e índio é burro, é preguiçoso. O
pessoal faz cordãozinho de nióbio. As vantagens em relação ao ouro são as
cores, e não tem reação alérgica. Nióbio é muito mais valioso que o ouro.
O índio sacudiu a cabeça, e agora já não era
um índio, não era um veado — era uma onça enfurecida, lançando-se contra o
presidente:
— Acabou!
Anhangá colocou um laço no pescoço de Jair, e
no instante seguinte estavam ambos sobre uma pedra larga, cercados pelo alto
clamor da floresta em chamas. Jair ergueu-se, aterrorizado, os piscos olhos
incrédulos, enquanto o incêndio avançava sobre a pedra:
— Você não pode me deixar aqui. Sou o
presidente do Brasil!
— Era. — Rugiu Anhangá, e foi-se embora.
Na manhã seguinte, o ajudante de ordens entrou
no closet e não encontrou o presidente. Não havia sinais dele. “Cheira a onça”,
assegurou um capitão, que nascera e crescera numa fazenda do Pantanal. Ninguém
o levou a sério.
Ao saber do misterioso desaparecimento do
marido, Michelle soltou um fundo suspiro de alívio.
Os generais soltaram um fundo suspiro de
alívio. Os políticos (quase todos) soltaram um fundo suspiro de alívio.
Os artistas e escritores soltaram um fundo
suspiro de alívio. Os gramáticos e outros zeladores do idioma, na solidão dos
respetivos escritórios, soltaram um fundo suspiro de alívio.
Os cientistas soltaram um fundo suspiro de
alívio. Os grandes fazendeiros soltaram um fundo suspiro de alívio.
Os pobres, nos morros do Rio de Janeiro, nas
ruas cruéis de São Paulo, nas palafitas do Recife, soltaram um fundo suspiro de
alívio.
As mães de santo, nos terreiros, soltaram um
fundo suspiro de alívio.
Os gays, em toda a parte, soltaram um fundo
suspiro de alívio.
Os índios, nas florestas, soltaram um fundo
suspiro de alívio.
As aves, nas matas, e os peixes, nos rios e no
mar, soltaram um fundo suspiro de alívio.
O Brasil, enfim, soltou um fundo suspiro de
alívio — e a vida recomeçou, como se nunca, à superfície do planeta Terra,
tivesse existido uma doença chamada Jair Messias Bolsonaro.
Publicado originalmente na revista Visão de Portugal.
Disponível em: https://blogdojuca.uol.com.br/2019/09/o-triste-fim-de-jair-messias-bolsonaro/
Disponível em: https://blogdojuca.uol.com.br/2019/09/o-triste-fim-de-jair-messias-bolsonaro/
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