terça-feira, 15 de dezembro de 2020

Todas as cartas de Clarice Lispector

 No Brasil, houve um tempo em que os textos denominados de “escritas de si” não eram vistos como material capaz de acessar a obra de escritores, escritoras, políticos e artistas em geral, de forma a ajudar na compreensão da obra. Como raras exceções, tínhamos a obra de Pedro Nava, O diário de Helena Morley e o Quarto de despejo: diário de uma favelada, de Carolina Maria de Jesus, por exemplo. Embora se louvasse e batesse cabeça para a obra de Proust, Nava e Morley, quase nunca se falava de Carolina Maria de Jesus. Por qual razão seria, caro leitor?   

Felizmente, as coisas mudaram (precisaram mudar lá fora primeiro, é claro) e hoje tem-se uma grande quantidade de biografias, diários, autobiografias e cartas, que são fonte para muitos pesquisadores. As escritas de si constituem-se como um reflexo da vida daqueles que fazem o registro. Assim, pelo diário ou pelas cartas de um escritor é possível compreender sua posição, bem como a posição da sua arte, num determinado contexto sócio-histórico.


Neste sentido, é bastante oportuna a publicação de Todas as cartas de Clarice Lispector (2020), pela editora Rocco. Concordamos como Teresa Monteiro que, ao prefaciar a obra em questão, afirma que “Todas as cartas inaugura uma nova etapa na bibliografia clariciana ao trazer um conjunto de praticamente meia centena de cartas inéditas que abordam temas da mais alta relevância de seu itinerário literário e biográfico. Por isso, sua publicação, justamente no centenário da escritora, tem um significado especial para leitores, professores, biógrafos, pesquisadores, editores e arquivos literários. Todas as cartas ratifica o diálogo entre os três últimos e mostra o novo patamar que os arquivos literários atingiram”.

“Clarice viveu a maior parte das décadas de 1940 e 1950 no exterior, de modo que escreveu bastante neste período tanto para manter o afeto da família e dos amigos que deixara no Brasil quanto para tratar da publicação dos seus livros. Isso apesar de afirmar que “não sabia escrever cartas”, já que fugia das descrições características das missivas de viagem. Sorte nossa, pois dessa forma suas cartas são tão interessantes quanto o resto de sua produção escrita: um convite à reflexão e um espelho de uma alma em permanente indagação sobre a condição humana”. 

Além de Todas as cartas, a editora Rocco também tem publicado Todos os contos e Todas as crônicas da autora.


domingo, 6 de dezembro de 2020

SISTER LOVE: AS CARTAS DE AUDRE LORDE E PAT PARKER 1974-1989

 

Já circulava em português brasileiro algumas traduções esparsas da obra de Audre Lorde (1934-1992) e Pat Parker (1944-1989). No entanto, só recente mente é que se começou a traduzir e publicar os trabalhos de Audre Lorde de forma mais efetiva. Entre vários já publicados tem-se o Sister outsider: essays & speeches, de 1984, considerado seu trabalho em prosa mais importante. No caso de Parker, o mercado editorial brasileiro ainda não atentou para a falta de traduções da obra desta, que é uma das mais importantes escritoras do século XX. Na postagem que se segue, no entanto, não falaremos sobre a obra de Lorde nem de Parker, mas das cartas que ambas trocaram no período de 1974 até 1989.

Sem tradução no Brasil, a obra chama-se Sister Love: The Letters of Audre Lorde and Pat Parker, publicada pela Sapphic Classics, no ano de 2018. A referida publicação só foi possível devido ao apoio da filha de Parker, Anastasia Dunham-Parker-Brady e de Elizabeth Lorde-Rollins e Jonathan Rollins, herdeiros de Lorde. O livro conta com uma introdução de Mecca Jamilah Sullivan, e edição de Julie R. Enszer. Sobre como surgiu a ideia da publicação das cartas das duas poetas, procedemos à uma tradução livre daquilo que diz a editora. Tem-se:

Quando encontrei pessoalmente Marty Dunham (já tínhamos trocado e-mails), ela me falou sobre as cartas entre Pat Parker e Audre Lorde. Ela disse que se tratava de uma correspondência linda e que parte das cartas tinha sido lida em alguns eventos em homenagem a Parker e Lorde. Fiquei intrigada. Na ocasião, ela não tinha cópias para que eu pudesse ler. Dois anos depois, volteia a San Francisco, para ajudar Marty a organizar o material de Parker para a Biblioteca Schlesinger e para a pesquisa de preparação para a obra completa de Parker (The Complete Works of Pat Parker). Uma das primeiras coisas que fiz foi ler essas cartas. Eram mágicas. Encantadoras. Hipnotizantes. Estas cartas apresentam a oportunidade para que os leitores possam vislumbrar os corações e mentes de duas extraordinárias e talentosas poetas e escritoras. Tem sido um enorme prazer dedicar tempo à essas cartas e editá-las neste livro.

Parker e Lorde se encontraram pela primeira vez em 1969, quando Lorde fazia um tour literário pela Costa Oeste. Wendy Cadden, artista gráfica e membra do Women’s Press Colective, as apresentou. Lorde tinha 35 anos de idade (nascida em 18 de fevereiro de 1934) e Parker tinha 25 (nascida em 20 de janeiro de 1974). As 26 cartas dessa correspondência (27 ao todo, pois há uma última carta, de Lorde para Marty Dunham) começam em outubro de 1974 após outra visita de Lorde à Costa Oeste. A amizade de vinte e seis anos entre Parker e Lorde, que se conclui com a morte de Parker, cobre os anos mais produtivos da produção poética e intelectual das duas autoras.


Uma indicação da força da amizade das duas poetas é a dedicatória de trabalhos de uma para a outra. O poema de Parker “For Audre” (The Complete Works of Pat Parker, p.177) captura a vibração da amizade entre ambas. Lorde dedicou à Parker sua coletânea final The Marvelous Arithmetics of Distance, publicado postumamente em 1993, com as seguintes palavras: “Para minha irmã Pat Parker, poeta e camarada-em-armas In Memoriam”. A coletânea inclui o poema “Girlfriend” (namorada), que também capta algo do lúdico que havia entre elas, assim como o sentido da amizade para Lorde. Esses poemas e cartas aludem à rica amizade entre estas duas poetas. (Tradução minha da Nota da Editora, p. 115-116).