" Adoniran Barbosa é
um grande compositor e poeta popular, expressivo como poucos; mas não é
Adoniran nem Barbosa, e sim João Rubinato, que adotou o nome de um amigo do
Correio e o sobrenome de um compositor admirado. A idéia foi excelente, porque
um artista inventa antes de mais nada a sua própria personalidade; e porque, ao
fazer isto, ele exprimiu a realidade tão paulista do italiano recoberto pela
terra e do brasileiro das raízes europeias. Adoniran é um paulista de cerne que
exprime a sua terra com a força da imaginação alimentada pelas heranças
necessárias de fora.
Já tenho lido que ele usa uma língua misturada de italiano e português. Não concordo. Da mistura, que é o sal da nossa terra, Adoniran colheu a flor e produziu uma obra radicalmente brasileira, em que as melhores cadências do samba e da canção, alimentadas inclusive pelo terreno fértil das Escolas, se alia com naturalidade às deformações normais de português brasileiro, onde Ernesto vira Arnesto, em cuja casa nós fumo e não encontremo ninguém, exatamente como por todo esse país. Em São Paulo, hoje, o italiano está na filigrana.
A fidelidade à música e à
fala do povo permitiram a Adoniran exprimir a sua Cidade de modo completo e
perfeito. São Paulo muda muito, e ninguém é capaz de dizer aonde irá. Mas a
cidade que nossa geração conheceu (Adoniran é de 1910) foi a que se sobrepôs à
velha cidadezinha caipira, entre 1900 e 1950; e que desde então vem cedendo
lugar a uma outra, transformada em vasta aglomeração de gente vinda de toda
parte. A nossa cidade, que substituiu a São Paulo estudantil e provinciana, foi
a dos mestres-de-obra italianos e portugueses, dos arquitetos de inspiração
neo-clássica, floral e neo-colonial, em camadas sucessivas. São Paulo dos
palacetes franco-libaneses do Ipiranga, das vilas uniformes do Brás, das casas
meio francesas de Higienópolis, da salada da Avenida Paulista. São Paulo da 25
de março dos sírios, da Caetano Pinto dos espanhóis, das Rapaziadas do Brás, na
qual se apurou um novo modo cantante de falar português, como língua geral na
convergência dos dialetos peninsulares e do baixo-contínuo vernáculo. Esta
cidade que está acabando, que já acabou com a garoa, os bondes, o trem da
Cantareira, o Triângulo, as Cantinas do Bixiga, Adoniran não a deixará acabar,
porque graças a ele ela ficará misturada vivamente com a nova mas, como o
quarto do poeta, também "intacta, boiando no ar."
A sua poesia e a sua
música são ao mesmo tempo brasileiras em geral e paulistanas em particular.
Sobretudo quando entram (quase sempre discretamente) as indicações de lugar,
para nos porem no Alto da Mooca, na Casa Verde, na Avenida São João, na 23 de maio,
no Brás genérico, no recente metrô, no antes remoto Jaçanã. Quando não há esta
indicação, a lembrança de outras composições, a atmosfera lírica cheia de
espaço que é a de Adoniran, nos fazem sentir por onde se perdeu Inês ou onde o
desastrado Papai Noel da chaminé estreita foi comprar Bala Mistura: nalgum
lugar de São Paulo. Sem falar que o único poema em italiano deste disco nos põe
no seu âmago, sem necessidade de localização.
Com os seus firmes 65
anos de magro, Adoniran é o homem da São Paulo entre as duas guerras, se
prolongando na que surgiu como jiboia fuliginosa dos vales e morros para
devorá-la. Lírico e sarcástico, malicioso e logo emocionado, com o encanto
insinuante da sua anti-voz rouca, o chapeuzinho de aba quebrada sobre a
permanência do laço de borboleta dos outros tempos, ele é a voz da Cidade.
Talvez a borboleta seja mágica; talvez seja a mariposa que senta no prato das
lâmpadas e se transforma na carne noturna das mulheres perdidas. Talvez João
Rubinato não exista, porque quem existe é o mágico Adoniran Barbosa, vindo dos
carreadores de café para inventar no plano da arte a permanência da sua cidade
e depois fugir, com ela e conosco, para a terra da poesia, ao apito fantasmal
do trenzinho perdido da Cantareira." (Antonio Cândido, 1975).
Texto de Antonio Candido
sobre Adoniran Barbosa. O texto está na contracapa do LP Adoniran Barbosa,
gravado pela ODEON no ano de 1975, com direção musical de José Briamonte.
Nenhum comentário:
Postar um comentário