Angeles. E é a partir da pintura Doutor Pozzi em Casa, que o escritor Julian Barnes elabora, em seu O homem do casaco vermelho (2021), um maravilhoso painel da cultura francesa e inglesa do começo do século XX. O livro de Barnes foi traduzido para o português por Léa Viveiros de Castro, e publicado pela editora Rocco.
Ao apresentar ao leitor o
modelo do quadro de Sargent, Barnes assim o descreve:
O modelo – o plebeu como nome
italiano – tem trinta e cinco anos, é bonito, usa barba, e está olhando com um
ar confiante por cima do nosso ombro direito. Ele é viril, mas esbelto, e aos
poucos, depois do primeiro impacto causado pela pintura, quando podemos pensar
que “o importante é mesmo o casaco”, percebemos que não. As mãos são mais importantes.
A mão esquerda está no quadril; a direita, no peito. Os dedos são a parte mais
expressiva do retrato. Cada um está articulado de forma diferente: totalmente
estendido, dobrado até a metade, totalmente dobrado. Se nos pedissem para
adivinhar a profissão do homem, poderíamos achar que era um pianista virtuoso.
Mão direita no peito, mão esquerda
no quadril. Ou talvez algo mais sugestivo do que isto: mão direita no coração,
mão esquerda na virilha. Isso faria parte da intenção do artista? (...). A mão
direita brinca com o que parece ser uma presilha. A mão esquerda está
enganchada em um dos cordões duplos da cintura, que repetem os cordões que
prendem as cortinas ao fundo. O olho os acompanha até um nó complicado, do qual
pende um par de borlas peludas, uma por cima da outra. Elas pendem logo abaixo
da virilha, como um pênis de boi escarlate. O pintor teve essa intenção? Quem
sabe? Ele não deixou nenhum relato da pintura. Mas ele era um pintor malicioso
além de magnífico; era também um pintor de ostentação, não tinha medo de
polêmica, e talvez, na realidade, fosse atraído por ela.
A pose é nobre, heróica, mas as
mãos tornam-na mais sutil e mais complicada. Não as mãos de um pianista, afinal
de contas, mas as de um médico, um cirurgião, um ginecologista (...) (BARNES,
2021, P. 7-8)
O livro de Barnes tem 272
páginas e é fartamente ilustrado. Pela pena do autor de O sentido de um fim, obra vencedora do Prêmio Man Booker Prize, de
2011, passam inúmeros nomes de todos os campos das artes e das ciências. Muitas
das ações, atitudes e trabalhos dessas pessoas serviram para quebrar paradigmas
criativos e comportamentais de uma época e apontar caminhos para as gerações
que lhes sucederam.
Assim sendo, a figura de
Pozzi é o ponto a partir do qual Barnes tece toda uma teia de relações pessoais
e profissionais, que envolve obras, autores e ideias as quais são de fácil
reconhecimento para uma grande parcela de leitores. Entre tantos, tem-se: Sarah
Bernhardt, que teria sido uma das inúmeras amantes de Pozzi, Adrien e Robert Proust
(pai e irmão de Marcel Proust e colegas médicos de Pozzi), enquanto o autor de Em busca do tempo perdido foi seu amigo,
assim como também o foi Oscar Wilde, Robert de Montesquiou, Jean Lorrain e
Joris-Karl Huysmann.
Na primeira orelha do livro lê-se:
Por intermédio de John Singer
Sargent, autor da pintura que dá título ao livro, e do próprio Dr. Pozzi
(grande colecionador), Juliana Barnes aborda um dos seus temas preferidos: a
arte, cuja análise ele transforma em radiografia de toda a sociedade. E ao
analisar as vidas e as obras de outros escritores célebres, como Guy de
Maupassant, Barbey d’Aurevilly, Gustave Flaubert e os irmãos Goncourt, ele
compõe um esplêndido e irretocável painel da vida cultural da Belle Époque, no
qual não faltam os toques dramáticos do modismo dos duelos e dos assassinatos
de médicos por pacientes insatisfeitos.
A leitura de O homem do casaco vermelho, de Barnes,
exige tempo, paciência e atenção do leitor, tendo em vista o entrelaçamento da
imensa quantidade de informações que constitui a narrativa. Isso, no entanto,
não diminui em absolutamente nada a grandeza do texto. Quanto mais dele se lê,
mais se deseja ler. Barnes é, sem dúvidas, um dos grandes autores do nosso
tempo.
Para
ler Julian Barnes:
1.
BARNES, Julian. O sentido de um fim.
Trad. Léa Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: Rocco, 2012.
2.
______________. Altos vôos e quedas
livres. Trad. Léa Viveiros de Castro Rio de Janeiro: Rocco, 2014.
3.
_____________. O ruído do tempo.
Trad. Léa Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: Rocco, 2017.
4.
_____________. Mantendo um olho aberto:
ensaios sobre arte. Trad. Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Anfiteatro, 2017.
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