terça-feira, 25 de março de 2014

A BOCA MARGINAL NO OUVIDO DA TRADIÇÃO

O termo “marginal” é um indicativo de tudo aquilo que se dá fora do eixo do que se convencionou chamar de “normal”, de uma ordem determinante ou de um cânone estabelecido. Refere-se, ainda, àquilo que é pertencente à margem, que vai à margem. Compreendemos também, que marginal é o excluído. Aquele que se recusa ser engolido por uma cultura que objetiva a padronização, a massificação.

Assim sendo, o termo “marginal”, como tudo aquilo que ele encerra, contém em seu cerne um indicativo de revolução, de insubordinação, e subversão. Dessa forma, tanto o homem dito marginal, quanto a arte por ele produzida já são, naturalmente, colocados como contrários ao status quo. E, tendo em vista o enorme poder dos aparelhos ideológicos que sustentam o Estado, ir contra eles resulta numa luta, na maioria das vezes, inglória.

Contudo, não apenas de conformados e subservientes o mundo é composto. Há, ainda, aqueles que põem as máscaras de revolucionários, subversivos e marginais, mas que são, da ponta dos pés ao último fio de cabelo, apenas hipócritas travestidos que matariam a própria mãe por um punhado de moedas e umas fotos numa coluna de um segundo caderno qualquer. O mundo, ainda bem, é composto de homens e mulheres que criaram, ao longo da história da humanidade, culturas libertárias, fazendo frente às culturas hegemônicas.

Nos Estados Unidos, por exemplo, por volta da segunda metade da década de 50, um grupo de autores marcadamente underground, composto basicamente por Jack Kerouac, Allen Ginsberg e William S. Burroughs assumiu a linha de frente de uma literatura para lá de marginal, conhecida no mundo inteiro como Beat Generation, a Geração Beat.

Não se pode precisar qual a origem da palavra beat quando associada à literatura. Sabe-se, porém, que foi o próprio Kerouac quem primeiro deu ressonância e expandiu o significado da palavra, que escutara pela primeira vez da boca de Herbert Huncke, um marginal homossexual que fazia ponto na Times Square, em Nova York. Huncke aparece brevemente nas paginas do On the Road (1955), obra máxima de Jack Kerouac, sob o nome de Elmo Hassel. Para Huncke, beat definia um estado de “exaltada exaustão”. Contudo, como bem afirma Eduardo Bueno no prefácio à edição brasileira de 1977 do On the Road, Kerouac percebeu as ressonâncias múltiplas da palavra, que significa, simultaneamente, “batida” (no sentido de ritmo musical), “abatido”, “pulsação”, “cadência do verso”, “trajeto” ou “trilha”, “furo” (jornalístico), “pilantra”, além de conter, também, e acima de tudo, o radical de “beatitude” – que foi o que despertou Kerouac para a sonoridade do vocábulo ao qual ele se vincularia pelo resto da vida.

Assim sendo, os beatniks farão de sua literatura uma espécie de trincheira, a partir da qual atirarão em várias direções. Ou seja, não se pode falar, hoje, em liberdade sexual, movimento de libertação feminina, liberdade religiosa ou liberdade dos direitos civis e contra o racismo sem aludir aos marginais da Geração Beat. Essa relação com a realidade se justifica tendo em vista que a narrativa Beat baseava-se na vida, não nos pensamentos. A espontaneidade da prosa de Kerouac, por exemplo, buscava uma aproximação com a revolução musical promovida pelo jazz bop, de Charlie Parker, Miles Davis, Lenine Tristano e outros; caracterizada pela liberdade de improvisação. Dessa forma, percebe-se que os protagonistas e figurantes das obras da Geração Beat possuem interesse autônomo, são personagens de si mesmos. Além da aproximação com o bop, os beatniks também flertaram com o expressionismo de Jackson Pollock.

A contribuição de Jack Kerouac e seu On the Road não se limita apenas à literatura, mas a toda uma geração que bebeu na fonte dos anos cinqüenta. De uma forma ou de outra, foram os beatniks que atiçaram, por exemplo, Bob Dylan e Jim Morrison a darem sua contribuição ao nosso cinzento mundinho tosco. O curioso, no entanto, é que passado tanto tempo, ainda perdure um questionamento que não mais se sustenta. Dos bolorentos gabinetes de algumas decrépitas academias, ainda se fomentam discussões acerca da importância ou não da produção da Geração Beat. A literatura da Geração Beat, assim como qualquer produção feita fora dos muros da academia, não necessita do aval de acadêmicos. A arte, marginal, ou rotulada do que quer que seja, estará sempre acima dos pré-estabelecidos cânones. É cômico, para não dizer ridículo, que determinados “estudiosos” insistam em considerar Jack Kerouac como um subliterato. Ao autor, resta, do além, gargalhar da incompetência de alguns crítica em ver o óbvio.

Mas não só de Kerouac se constitui a Geração Beat. Outro grande nome dessa geração é William Burroughs. O autor de obras como Junky e The Naked Lunch era, entre os demais, o mais velho e o mais experiente. Os demônios, assim como todas as paranóicas sensações que atormentam a cabeça de um dependente químico são ricamente relatadas em Junky, seu primeiro livro. Em The Naked Lunch, por sua vez, Burroughs retrata toda sorte de coisas que compuseram seus terríveis anos de vicio. Lá, é possível caminhar pelo universo dos traficantes, ver os mais horrendos e ameaçadores lagartos subindo e descendo paredes. Monstros, tarados e sodomitas dividem a mesma sombria viagem. E, conforme alguns, só quem viu o inferno bem de perto poderia retratá-lo tão fielmente como o fez Burroughs.

Embora as obras de Kerouac e Burroughs tenham dado poderoso destaque à prosa beat, a poesia também se mostrou através da pena de Allen Ginsberg. De características voltadas para o orientalismo e o ativismo político, a poesia de Ginsberg é muito influenciada pelas experiências alucinógenas do autor. Sua obra referencial é Uivo, Kaddish e Outros Poemas. O que se nota como leitmotiv da sua produção é o uso da primeira pessoa do singular, ou seja, a utilização de um eu que a tudo viu, que a tudo viveu, como testemunha do seu próprio tempo. Tal recurso confere à sua obra uma dimensão que é, ao mesmo tempo, lírica, intimista e épica.

Excetuando-se sua fase demasiadamente subjetiva, Allen Ginsberg procurou, ao longo da sua carreira, uma poesia com os pés no chão. Assim, conforme Cláudio Willer nas suas notas à edição brasileira de Uivo, Kaddish e Outros Poemas (1999), inúmeros estudos (e as palestras do próprio Ginsberg sobre sua criação poética) caracterizam-no como um ponto de encontro, lugar de diálogo entre William Blake e Walt Whitman, de um lado, e Ezra Pound e William Carlos Williams, de outro. Mas a vertente poética da qual está mais próximo é mesmo o objetivismo.

A esse importante movimento de contracultura imposto ao coração histórico-cultural dos Estados Unidos da América, outros nomes, tão indispensáveis quanto, também devem ser mencionados.
Assim, além de divulgar, inclusive editando alguns livros do grupo beatnik, Lawrence Ferlinghetti, dono da livraria City Lights, também escreveu algumas obras. Lembremos ainda de Gregory Corso e Ken Kessey e Charles Bukowsky. Esse último, o mais marginal de todos. Um beatnik que nunca se assumiu como tal.
Assim como a iconoclastia presente em Bukowsky e em toda a Geração Beat, o eterno desejo de dizer “não” aos sistemas que aprisionam e tolhem a liberdade estará sempre presente naqueles que aprenderam que andar pela margem pode ser muito mais prazeroso do que navegar por rios que levam sempre aos mesmos velhos portos.      

quinta-feira, 20 de março de 2014

ZYGMUNT BAUMAN E AS 44 CARTAS DO MUNDO LÍQUIDO MODERNO

Começo o presente  trabalho, fazendo o que não se deve fazer em um texto de análise crítica: um desabafo. O desabafo consiste, e isso, espero, seja coisa unicamente minha, no medo que sinto de que o autor do livro sobre o qual falarei aqui simplesmente não exista; nunca tenha existido. Meu medo se fundamenta na caudalosa produção desse senhor de mais de oitenta anos, que produz assustadoramente como se um homem não fosse, mas uma equipe especializada em levar adiante os mais contundentes debates abrigados sob tudo aquilo que comporta, sociologicamente falando, o termo "líquido". 

Zygmunt Bauman
O século XX proporcionou ao mundo uma gama de autores de imenso valor intelectual. Isso, no entanto, é bom deixar claro, não diminui os séculos anteriores, nem aqueles que virão do século XXI em diante, umavez que cada época produz seus mestres, artistas e pensadores. Por ser um homem do século XX é quetomo tal período como recorte, ressaltando a presença e a contribuição que nos é dada por homens como Umberto Eco, Frederic Jameson, Stuart Hall, Alberto Manguel e Zygmunt Bauman; por exemplo.

 Deles, o que mais atrai minha atenção é Zygmunt Bauman. Publicado no Brasil pela editora Zahar, Bauman nasceu na Polônia no ano de 1925. Perseguido pelo estado autoritário polonês, deixou seu cargo de professor na universidade de Varsóvia, trabalhando em paises como Austrália, Canadá e Estados Unidos. Desde o ano de 1971 Bauman mora na Inglaterra, onde trabalhou como professor na universidade de Leeds; sendo hoje, professor emérito das universidades de Varsóvia e Leeds. Zygmunt Bauman é reconhecido tanto pela quantidade de livros que produz, quanto pela qualidade da sua obra como um todo;obra essa voltada para a análise das mudanças socioculturais e políticas  mais relevantes em nosso tempo. E assim sendo, em vez de lançar mão de conceitos já estabelecidos (e que muitas vezes se confundem) como pós-modernidade, contemporaneidade ou modernidade tardia; por exemplo, Bauman cunha o termo modernidade líquida, passando a analisar a sociedade contemporânea a partir dos seus medos, educação, economia, consumo, morte, amor, vigilância e arte; para ficarmos apenas em alguns.

Numa tentativa de demonstrar o quão rica é a produção do intelectual polonês, citamos algumas (apenas algumas) de suas obras referenciais. Neste caso, todas as obras estão em português e, como disse, todas publicadas pela editora Zahar: O mal-estar da pós-modernidade (1998), Globalização - as consequências humanas (1999), Modernidade Líquida (2001), Amor Líquido - sobre a fragilidade dos laços humanos (2004), Identidade (2005), Vidas desperdiçadas (2005), Europa (2006), Vida Líquida (2007), A Arte da Vida (2009), Capitalismo Parasitário  (2010) Bauman sobre Bauman (2011), 44 Cartas do Mundo Líquido (2011), Ensaios sobre o conceito de cultura (2012), Isto não é um diário (2012), Sobre educação e juventude (2013), A cultura no mundo líquido moderno (2013) e Vigilância Líquida (2014). E enquanto você, caro leitor, lê esse texto, muita coisa produzida por Zygmunt Bauman já abunda nas livrarias do país.

Não é tarefa das mais fáceis escolher apenas uma obra de Bauman para falar a respeito. Assim sendo, tendo em vista o advento das tecnologias e, mais especificamente, os usos das redes sociais e todas as demais formas de comunicação do mundo moderno; parece-nos bastante oportuno lançarmos olhos sobre a obra intitulada 44 Cartas do Mundo Líquido Moderno, 2011. Nas 44 cartas contidas na referida obra, Zygmunt Bauman escreve sobre assuntos que discorrem sobre os usos do Facebook, do Twitter, do sexo virtual, da privacidade (ou da falta dela); sem descuidar dos assuntos que constituem as bases das suas principais discussões, por estarem no cerne da compreensão da sociedade. Dessa forma, o sociólogo discorre sobre as relações entre pais e filhos, sobre educação, sobre o consumo e a cultura; por exemplo. 

Já no primeiro texto, denominado de "Sobre escrever cartas... de um mundo líquido moderno" (p. 7-12), Bauman opta por fazer alguns esclarecimento sobre a referida obra. Afirma o autor:

Cartas de um mundo líquido moderno... Foi isso que os editores de La Repubblica delle Donne  (Conforme N.T, trata-se de uma revista semanal dirigida ao público feminino, dedicada a temas relativos a política, economia e cultura contemporâneas) me pediram para escrever e enviar aos seus leitores a cada quinze dias. É o que venho fazendo há quase dois anos (Conforme N.T. As cartas foram escritas em 2008 e 2009, e reunidas, editadas e ampliadas para  o livro em questão).
 Cartas que vêm do mundo "líquido moderno", quer dizer, o mundo que eu, o autor das missivas, e vocês, possíveis, prováveis, esperados leitores, compartilhamos. O mundo que chamo de "líquido" porque, como todos os líquidos, ele jamais se imobiliza nem conserva sua por muito tempo. Tudo ou quase tudo em nosso mundo está sempre em mudança: as modas que seguimos e os objetos que despertam nossa atenção (uma atenção, aliás, em constante mudança de foco, que hoje se afasta das coisas e dos acontecimentos que nos atraiam ontem, que amanhã se distanciará das coisas e acontecimentos que nos instigam hoje); as coisas que sonhamos e que tememos, aquelas que desejamos e odiamos, as que nos enchem de esperanças e as que nos enchem de aflição. (BAUMAN, 2011:7)


E a partir da distinção dos dois tipos de narrativas (histórias de marinheiro e histórias de camponês), defendidos por Walter Benjamin (1892-1940), que Zygmunt Bauman desenvolverá o conteúdos das suas 44 cartas. Destarte, o autor opta por escrever histórias de marinheiro como se essas fossem contadas por camponeses, enfatizando o há de mais extraordinário nessas histórias, mas que nem sempre se consegue perceber. Para ele: "se quisermos tornar verdadeiramente familiares coisas que parece familiares, é preciso antes de mais nada fazê-las estranhas".

Adam Mickiewicz
Apontados conteúdo e forma, ainda resta ao leitor se perguntar a razão do título do livro. Por qual razão, perguntaria, são exatamente 44 cartas? A escolha do autor em nomear assim esse seu trabalho tem muito a ver com Quarenta e Quatro, figura  misteriosa referida em um poema de Adam Mickiewicz (1798-1855). As explicações para a significação do referido número, no entanto, são bastante variadas, mas não chegam a dar conta da amplidão de possibilidades semânticas.Contudo, é possível afirmar que para o poeta romântico polonês, "o número 44 representa o respeito e a esperança pela chegada da liberdade". Assim sendo, observamos que, como reforça o próprio Bauman, é "o espectro da liberdade que está presente nas 44 cartas, cujos temas, todavia, são variados - mesmo que de maneira invisível, como é da natureza dos espectros dignos deste nome".

Mesmo tendo sido escolhidas arbitrariamente para a publicação em análise, as 44 cartas de Zygmunt Bauman se mostram como um grande escopo para a reflexão dos tempos em que vivemos. Longe de serem receitas prontas para o que quer que seja, as missivas do professor polonês servem para dizer-nos dos caminhos que nós, enquanto humanidade, temos trilhado. Se o nosso impulso para escrever cartas está se esvaindo? Talvez. Mas que não se esvaia jamais o impulso naturalmente humano de ansiarmos pela conquista e manutenção da liberdade em tempos tão liquefeitos. 

terça-feira, 18 de março de 2014

BLISS: A IRONIA EM KATHERINE MANSFIELD

Katherine Mansfield
Ao longo dos tempos, a ironia tem se desenvolvido muito lentamente. Na Inglaterra, por exemplo, a ironia sempre foi compreendida como sinônimo de dissimulação, atenuação da verdade ou paródia. Somente por volta da primeira metade do século XVIII, o significado de “ironia” foi ampliado e compreendido como forma de comportamento. Contudo, apenas no começo do século XIX, na Alemanha, é que a palavra “ironia” assumirá novos significados. A ironia é um fenômeno bastante antigo, observada primeiramente na República, de Platão, como eironeia. Contudo, a ironia não é original da cultura grega, uma vez que já aparecera em textos como o Êxodo e Beowulf, o longo poema épico britânico do século VIII.

A assunção de novos significados está diretamente relacionada às especulações filosóficas e estéticas que, por muitos e muitos anos, alçaram a Alemanha à liderança intelectual da Europa. Entre todos aqueles responsáveis pelos novos significados dados à ironia, estão Frederich Schlegel, seu irmão A.W. Schlegel e Karl Solger. Além das pesquisas que eles fizeram enfatizando a presença da ironia no Rei Lear, de Shakespeare, por exemplo, eles também recorreram ao termo “ironia” ao falar da objetividade, da indiferença e da liberdade do artista em relação ao seu trabalho. Ao longo da história, muitos outros escreveram sobre o conceito de ironia. Connop Thirlwall e Kierkgaard, por exemplo, o fizeram ainda sob a influência dos alemães.

Não apenas os estudiosos da ironia, mas também alguns romancistas e filósofos escreveram sobre a ironia. Para Heine, Baudelaire, Nietzsche e Thomas Mann, entre outros, a ironia é, principalmente, ironia romântica. Uma vez que o tema “ironia” é dos mais extensos, não é nosso objetivo esgotá-lo ( o que seria impossível!), mas apenas observá-lo,considerando apenas os dois principais tipos de ironia: o verbal (ou comportamental) e o situacional, localizando-os na narrativa de Katherine Mansfield.

Em Irony (1970), D.C. Muecke classifica a ironia em dois grupos básicos: o primeiro, é a ironia de um sujeito que, intencionalmente, mostra-se irônico. Trata-se da ironia verbal ou comportamental. O outro é a ironia resultante de uma situação irônica ou um evento no qual não há um sujeito irônico, mas uma “vítima” e um observador. Trata-se da ironia situacional, também chamada de ironia inconsciente ou intencional.

A prosa de Katherine Mansfield é carregada de fortes cores de ironia. É, na verdade, a linha que costura contos como: “The Doll's House”, “Psychology” e “The Garden Party”. Mas, acreditamos que seja em “Bliss” onde o texto da autora alcança o ápice da ironia.

A palavra “bliss” significa “felicidade”, mas semanticamente o termo encerra um sentido muito mais amplo do que apenas felicidade. O significado implícito no termo “bliss” aproxima-se de algo como “glorioso” e “divino”.

O conto “Bliss” foi escrito em 1920 e é narrado pela voz de um observador (se há um observador, há uma “vítima”. O personagem principal é uma mulher de nome Berta Young. Bertha possui tudo o que deseja: um bom marido, um bebê adorável, uma grande e confortável casa com um lindo jardim, boa comida, dinheiro, livros, música e amigos, muitos amigos. Bertha tem uma vida perfeita. Tão perfeita que costuma declarar aos sete ventos o quanto é feliz: “Eu sou muito feliz”, diz. Ela é tão feliz que, mesmo aos trinta anos de idade, age como se fosse uma criança! Ao mesmo tempo em que possui tudo aquilo que deseja, Bertha demonstra não saber lidar com o que tem. Que irônico! Observa-se assim, que  a ironia está presente desde o primeiro parágrafo, quando a narradora apresenta Bertha ao leitor. O sobrenome dela, lembrem-se, é Young (jovem), sinônimo de juventude, de vida.

Bertha Young é vítima em um círculo de ironia situacional. A vítima da ironia, conforme Muecke, não precisa ser, mas, na maioria das vezes é arrogantemente, deliberadamente cega. Se não revelado por palavras ou ações, a vítima da ironia não suspeita, nem mesmo remotamente, que as coisas podem não ser aquilo que ela, ingenuamente, acredita que sejam. Assim sendo, Bertha Young acredita que sua vida seja perfeita, por ter tudo aquilo que tem. Acredita, assim, que não são os sentimentos, as atitudes ou as emoções que a mantém feliz, mas seus bens materiais. Dessa forma, quanto maior é a cegueira da “vítima”, maior é a ironia.

Bertha parece não ter consciência da realidade que a cerca, uma vez que vive em um mundo de aparências. A narradora compara Bertha a uma pereira cheia florida, símbolo de perfeição. Embora a narrativa  não afirme, mas o leitor pode inferir que uma árvore cheia de flores só é possível conforme permite a primavera. Assim, para a jovem Bertha, a vida é sempre primaveril, mesmo quando nem de longe a primavera parece se avizinhar.

sábado, 15 de março de 2014

A MEDULA DO POEMA

Costuma-se dizer que um bom livro é aquele que, sozinho, consegue ficar de pé. É claro que isso não procede, sendo apenas mais uma das inúmeras besteiras ditas abaixo da linha do Equador, por desocupados de marca maior. Se assim o fosse, não receberiam créditos nenhum dos livros de Mário Quintana, Bartolomeu Campos de Queirós ou Manoel de Barros. O lugar estaria assegurado a uns poucos. Entre eles, Viva o Povo Brasileiro (1984), de João Ubaldo Ribeiro e o volume único de Os Donos do Poder (1958), de Raymundo Faoro, para ficarmos apenas em alguns.

Digo isso por ter lido recentemente, o livro A desmedula da seta (2011), de autoria do poeta Alan Mendonça. O livro é fininho e, se apenas isso contasse, não valeria de muita coisa; uma vez que não consegue ficar de pé. O que realmente vale em uma obra é o que se diz e o como se diz. Em outros termos, é o miolo o que interessa, o cerne da palavra. No caso de Alan Mendonça, a medula do poema. E o autor de Varandas (2004) sabe muito bem como dissecar a palavra, costurar silêncios e desmedular a rigidez da seta. 

Vencedor de inúmeros prêmios literários, Mendonça já é reconhecidamente um dos principais nomes da cultura cearense; uma vez que transita com enorme facilidade pelos campos da arte-educação, da composição musical, pelo teatro, pela crônica e pelo conto. A obra da qual tratamos aqui, foi vencedora do Prêmio Criação Literária, da Secretaria de Cultura do Estado do Ceará, no ano de 2009. Publicado pelo selo Caixeiro Viajante de Leitura, o livro conta com o auxílio luxuoso do prefácio de Jorge Pieiro,  apresentação de Pedro Salgueiro e ilustrações de Yuri Yamamoto. O livro já nos cativa e nos instiga a partir do seu título A desmedula da seta. E assim sendo, numa tentativa de compreendermos o sugestivo título, somos levados mais do que imediato a buscarmos não a significação da "desmedula", mas a compreensão da definição do próprio termo  "medula". Nesse caso, nada como um bom dicionário para não nos deixar cair na tentação das armadilhas lexicais tão abundantes na língua dos homens.


E eis que o dicionário Houaiss (2004) nos diz que, em sentido figurado, a medula é a parte mais interna ou central; o âmago. E ao apreendermos o significado (na verdade, um dos) do termo "medula"; facilmente inferimos as possíveis significações contidas no termo "desmedula", utilizado pelo poeta. Desmedular, por sua vez, pode ser compreendido como o ato de retirar a medula. O termo "seta", por sua vez, pode significar flecha. Pode, no entanto, também significar rumo. Dessa forma, numa leitura particularmente nossa,  "a desmedula da seta"  pode significar, por exemplo, a capacidade de se aproveitar ao máximo aquilo que, de uma forma ou outra, nos é oferecido. Podendo significar ainda, a desconstrução de um rumo, de um caminho/destino previamente traçado. "Desmedular a seta" também pode ser compreendido como um indicativo do desejo de explorar e "sorver" o poema em uma tentativa de compreendê-lo no seu todo. Deixamos claro, no entanto, que essas são apenas umas poucas tentativas de análise, levando-se em consideração a abertura proposta por toda e qualquer obra literária.

O pequeno-grande livro de Alan Mendonça traz cinquenta e dois poemas, abordando os mais variados assuntos acerca do cotidiano. A linguagem do poeta é lírica, não abandonando, contudo, a crítica social e, vez ou outra, a metapoesia. "No meio das chuvas" (p.13) nos diz o poeta: " Que a poesia se desfaça das sombrinhas e viva no meio das chuvas". Sobre costurar silêncios, o poeta afirma em "Das cartas em branco para Maria do Monte" (p.17): "Ainda era princípio...manhãzinha.../ainda dormia a não ter com as horas a última palavra não dita...". Sobre lembranças e memórias, tem-se "Da medula da lembrança" (p.15): "O trágico vazio da espera/a medula das lembranças/a salpicar imagens/no muro caraquento da memória". Em "Sapiens" (p.19), a poesia de Alan Mendonça dialoga com a poesia de Manuel Bandeira (1886-1968), especificamente com o poema "O bicho". Vejamos: "Um cachorro chafurda um lixo/a procurar um livro/um homem chafurda um mundo a procurar um osso. Os dois se cruzam em uma esquina e não se reconhecem". A ironia que tece o poema de Bandeira é semelhante àquela que recobre o poema de Mendonça.

No que diz respeito às temáticas presentes na obra em questão, o autor não se furta aos temas mais recorrentes na poesia universal. Dessa forma, o poeta constrói  metapoemas (p.13, p.14, p.20, p.22); fala sobre a rua (p.26, p.),a lua (p.27, ),o homem (p.11, p.34), a guerra (p.14) e o amor (p.65, p.66); para ficarmos apenas em alguns exemplos. Modernista, a poesia de Alan Mendonça não segue nenhuma forma fixa. Ao contrário, o poeta fica bastante à vontade para estruturar sua poesia da maneira que bem desejar. Dessa forma, surgem poemas minimalistas, bem como poemas inconclusos; ou como prefere o autor, poema em construção. Além disso, por ser compositor, percebe-se a relação entre o texto poético de Alan Mendonça e suas letras de música (textos não menos poéticos), constituindo o que se deve compreender por melopoética (do grego, melos = canto + poética), terminologia essa cunhada por Steven Paul Scher (1936-2004). Um exemplo, é o poema "matriz" (p.74), musicado por Liduíno Pitombeira. Diz o poema: "Missa na matriz/imenso mundo a girar/bola de meia/bola de meia/café com queijo/molhado pão/benção de pai e de mãe/tantas e tantas tias/e o amor com um cheiro de lá-de-casa".

Consciente de que "a vida é curta/e o dia um diamante/que a loucura é sadia/e a lucidez perigosa", Alan Mendonça não nos parece ser daqueles poetas que dormem, como se não dormissem embaixo de uma pedra. Ao contrário,alerta, segue construindo seus poemas, pois bem o sabe, como afirma Manoel de Barros, que "poesia é voar fora da asa". Por isso e por muito mais, a poesia de Alan Mendonça está de pé, pedindo passagem e demarcando território no multifacetado universo da literatura brasileira.



quarta-feira, 5 de março de 2014

UNICÓRNIOS, PÁSSAROS E CANÇÕES


               Nos últimos anos muito se tem falado sobre o fim do livro. Curioso, no entanto, é que mesmo com o advento do livro digital nunca se publicou tanto, nunca se leu tanto. Os motivos podem ir desde a vontade de se exilar de um mundo amedrontador, de uma vida cruel ou apenas pelo simples prazer de experimentar o deleite proporcionado pela leitura, independentemente do suporte, seja ele físico ou digital. É bom saber que em algum lugar do mundo há alguém escrevendo para o deleite de outros. Refiro-me especificamente àqueles que produzem ficção, pois, como Todorov, acredito que só a ficção nos salva.

                  E eis que temos mais uma oportunidade de nos deleitarmos com a prosa do escritor Jards Nobre. O mesmo Jards Nobre que nos brindou em 2009 com o romance Curral de Pedras. Narrativa das mais engenhosas, o romance estreante de Jards Nobre, publicado pela editora ABC, reúne vários dos elementos comuns à estética Realista/Naturalista. Assim, caso o leitor desatento caia na "armadilha" do autor, poderá acreditar, de imediato, tratar-se apenas de mais uma história, que se desenvolverá a partir de um suposto triângulo amoroso, tão recorrente nos romances realistas. Contudo, e isso é muito bom, o autor não se limita a revisitar Madame Bovary, O Primo Basílio, Dom Casmurro, O Ateneu ou O Cortiço; mas vai além. Costura a trama que envolve as personagens principais, com os mais relevantes ingredientes constituintes das chamadas narrativas contemporâneas, mostrando-se um exímio contador de uma boa história, capaz de prender a atenção do leitor até o desfecho da narrativa. E essa é, a meu ver, característica indispensável ao bom escritor.
     Passados três anos de maturação desde o lançamento do festejado Curral de pedras, Jards Nobre surge com Pássaros sem canção. Cuidadoso, o autor afirma tratar-se de um romance com características neo-naturalistas e neo-realistas, deixando claro tratar-se de uma narrativa de leitura inadequada para menores de 18 anos. Motivo? A obra contém linguagem obscena, descrição explícita de relações sexuais, homossexualidade e estupro. São elementos “explosivos” que se não forem manuseados com perícia podem explodir na cara do próprio autor. Mas Nobre não é apenas um autor, mas um autor que conhece os meandros da elaboração ficcional, demonstrando isso a cada novo trabalho. A casa da ficção, alerta James Wood, tem muitas janelas, mas só duas ou três portas e, ao analisarmos o romance em questão, parece-nos claro que Jards Nobre sabe exatamente onde estão as tais três portas. Ouso afirmar, inclusive, que ele até encontraria uma quarta se ela existisse. Será que não existe?
     Dos elementos da narrativa de ficção, talvez, dependendo do autor, o mais difícil seja, ainda conforme Wood, a criação das personagens. Em Como funciona a ficção (2011), o referido autor afirma: “o romancista inexperiente se prende ao estático, porque é muito mais fácil descrever do que o móvel: o difícil é tirar as pessoas desse amálgama estagnado e movimentá-los numa cena”. E é com a maestria de um romancista experiente que Jards Nobre conduz suas personagens principais, Renato e Adriano, pelo céu e inferno da narrativa que agora nos apresenta, numa tentativa de se soltarem das amarras do tempo, das armadilhas da vida.

     Pássaros sem canção é uma história de amor, de um amor que até pouco tempo não ousava dizer seu nome. E por ser assim, também é uma história sobre a crueldade do humano, a hipocrisia da sociedade e a mesquinhez do espírito. Por tal ótica, a obra de Jards Nobre parece não apresentar nada de novo. Mas apenas parece. Cabendo a cada um dos seus leitores a compreensão do que é proposto pela narrativa, pela provocação do romancista. E será que todos compreenderão a narrativa? Claro que não. Quantos não tentarão ver chifres em cabeças de cavalos, unicórnios no jardim; ou seja, quantos leitores não se sentirão tentados a confundir autor com narrador, realidade com ficção? O que o leitor fará com a narrativa a partir de agora não cabe mais ao autor responder. Os livros são como filhos, uma vez postos no mundo, devem seguir seu caminho sob os olhares dos outros. Inclusive daqueles que só têm olhares para os outros. Pássaros sem canção é uma obra que traz em si o signo da provocação e a qualidade literária de um autor que se reinventa a cada novo trabalho.

sábado, 1 de março de 2014

RODOLFO TEÓFILO E A SAGA DE JESUÍNO BRILHANTE

Saga é, conforme a maioria dos dicionários, uma narrativa heroica cheia de acontecimentos maravilhosos e extraordinários. Trata-se, conforme Baldick (1990), de um termo de origem nórdica usado para denominar as narrativas em prosa compostas durante a Idade Média, na Escandinávia e na Islândia por volta dos séculos XXII e XIV . É claro que com o decorrer do tempo, o termo "saga" assumiu novas significações e até ressignificações, uma vez que nem toda saga aponta para feitos escandinavos nem tem que ser permeada de acontecimentos maravilhosos e extraordinários se tomarmos ambas as palavras ao pé da letra, principalmente no contexto da literatura fantástica.

Deixando de lado esses pormenores, o que aproxima o cangaceiro Jesuíno Brilhante, o escritor Rodolfo Teófilo e o pesquisador Sânzio de Azevedo? As respostas podem até ser as mais variadas (até absurdas), mas a que aqui nos interessa é aquela proposta pelo professor Sânzio de Azevedo ao escrever seu ensaio sobre o livro de Rodolfo Teófilo, Os Brilhantes (1895), analisando a saga de Jesuíno Brilhante, o cangaceiro que virou lenda  no Rio Grande do Norte. 

Sânzio de Azevedo
Sânzio de Azevedo nasceu em Fortaleza no dia 11 de fevereiro de 1938, tendo sido professor da Universidade Federal do Ceará por trinta anos. Autor de mais de vinte livros de ensaio e poesia, Azevedo é a principal referência em literatura cearense em todo o país. Seu livro Literatura Cearense, publicado pela Academia Cearense de Letras, em 1976, embora esgotado, ainda é referência para os estudos da literatura cearense. É impossível pesquisar a literatura cearense sem fazer menção aos trabalhos de Sânzio de Azevedo. E eis que o incansável pesquisador, ocupante da cadeira número 1 da Academia Cearense de Letras, cujo patrono é Adolfo Caminha, publica Rodolfo Teófilo e a Saga de Jesuíno Brilhante (2013). A publicação se dá em decorrência do autor ter sido contemplado com o prêmio Braga Montenegro de ensaio/crítica literária, da Secretária da Cultura do Estado do Ceará.

Na obra em questão, o autor discorre sobre o já citado livro de Rodolfo Teófilo, autor reconhecidamente importante para a compreensão da literatura cearense. Por literatura cearense, concebemos não apenas aquela publicada no Ceará, mas também aquela produzida por um cearense independentemente de onde quer que ele esteja; podendo acrescentar ainda aquela literatura produzida por aqueles que são "cearenses por que querem". Nesse último quesito, inclui-se o próprio Teófilo. Nascido em Salvador, Bahia, no ano de 1853, Teófilo costumava afirmar que: "Sou cearense porque quero". E assim sendo, Rodolfo Teófilo acabou por se tornar um cearense dos mais bravos, determinados e cultos. Sua bibliografia é bastante relevante em quantidade e qualidade, abrangendo os mais variados campos do conhecimento.No que concerne aos romances que publicou, merecem destaque A Fome (1890), Os Brilhantes (1895), Maria Rita (1897) e O Paroara (1899).

Ao discorrer sobre o Naturalismo e a inspiração regional no Ceará, Alfredo Bosi, em História Concisa da Literatura Brasileira (1980) afirma:

Do Ceará, terra de Adolfo Caminha, também provieram outros naturalistas que dariam à região da seca e do cangaço uma fisionomia literária bem marcada e capaz de prolongamento tenazes até o romance moderno (...). A vivacidade desse contexto cultural permitiu virem à luz alguns romances regionais: (...); A Fome (1890), Os Brilhantes (1895) e O Paroara (1899), de Rodolfo Teófilo, livros atulhados do jargão científico do tempo, mas que valem como retorno literário ao pesadelo da seca e da imigração. (BOSI, 1980: 217-218).


O ensaio de Sânzio de Azevedo tomo como objeto de análise a segunda edição do romance Os Brilhantes, publicado em Fortaleza no ano de 1906. Conforme Azevedo, o referido romance trata: "...da história romanceada do criminoso Jesuíno Brilhante e de seu bando, cujas peripécias ficaram famosas, principalmente no Nordeste brasileiro (à época denominado Norte), na segunda metade do século XIX". O ensaio está organizado da seguinte forma: uma introdução na qual o autor teoriza sobre o Realismo e o Naturalismo p.07-24). Em seguida, discorre sobre o cangaço (p. 25-29). A partir da página 30, o pesquisador apresenta a obra, tecendo uma análise detalhada do romance, abordando todos os aspectos constituintes do texto literário de Rodolfo Teófilo (p. 30-80). Na sequência, há uma parte dedicada a animalização do homem, tomando por base teórica o texto A metáfora do corpo no romance naturalista (1973), de Sonia Brayner.

A recepção do livro pela crítica é analisada pelo pesquisador no espaço que vai da página 97 até a página 109. A história de Jesuíno Brilhante e as várias versões que existem para a mesma história também são abordadas no texto de Sânzio de Azevedo desde a página 111 até a 123. A crítica feita por José Veríssimo e as consequentes alterações feitas pelo autor no referido romance estão devidamente comentadas da página 125 até a 129.

Rodolfo Teófilo e a Saga de Jesuíno Brilhante (2013) é mais um trabalho de fôlego do pesquisador Sânzio de Azevedo, vindo confirmar a excelência das suas pesquisas e a dedicação que demonstra aos estudos da cultura cearense, especificamente aqueles ligados à literatura. Os pesquisadores agradecem.