terça-feira, 25 de março de 2014

A BOCA MARGINAL NO OUVIDO DA TRADIÇÃO

O termo “marginal” é um indicativo de tudo aquilo que se dá fora do eixo do que se convencionou chamar de “normal”, de uma ordem determinante ou de um cânone estabelecido. Refere-se, ainda, àquilo que é pertencente à margem, que vai à margem. Compreendemos também, que marginal é o excluído. Aquele que se recusa ser engolido por uma cultura que objetiva a padronização, a massificação.

Assim sendo, o termo “marginal”, como tudo aquilo que ele encerra, contém em seu cerne um indicativo de revolução, de insubordinação, e subversão. Dessa forma, tanto o homem dito marginal, quanto a arte por ele produzida já são, naturalmente, colocados como contrários ao status quo. E, tendo em vista o enorme poder dos aparelhos ideológicos que sustentam o Estado, ir contra eles resulta numa luta, na maioria das vezes, inglória.

Contudo, não apenas de conformados e subservientes o mundo é composto. Há, ainda, aqueles que põem as máscaras de revolucionários, subversivos e marginais, mas que são, da ponta dos pés ao último fio de cabelo, apenas hipócritas travestidos que matariam a própria mãe por um punhado de moedas e umas fotos numa coluna de um segundo caderno qualquer. O mundo, ainda bem, é composto de homens e mulheres que criaram, ao longo da história da humanidade, culturas libertárias, fazendo frente às culturas hegemônicas.

Nos Estados Unidos, por exemplo, por volta da segunda metade da década de 50, um grupo de autores marcadamente underground, composto basicamente por Jack Kerouac, Allen Ginsberg e William S. Burroughs assumiu a linha de frente de uma literatura para lá de marginal, conhecida no mundo inteiro como Beat Generation, a Geração Beat.

Não se pode precisar qual a origem da palavra beat quando associada à literatura. Sabe-se, porém, que foi o próprio Kerouac quem primeiro deu ressonância e expandiu o significado da palavra, que escutara pela primeira vez da boca de Herbert Huncke, um marginal homossexual que fazia ponto na Times Square, em Nova York. Huncke aparece brevemente nas paginas do On the Road (1955), obra máxima de Jack Kerouac, sob o nome de Elmo Hassel. Para Huncke, beat definia um estado de “exaltada exaustão”. Contudo, como bem afirma Eduardo Bueno no prefácio à edição brasileira de 1977 do On the Road, Kerouac percebeu as ressonâncias múltiplas da palavra, que significa, simultaneamente, “batida” (no sentido de ritmo musical), “abatido”, “pulsação”, “cadência do verso”, “trajeto” ou “trilha”, “furo” (jornalístico), “pilantra”, além de conter, também, e acima de tudo, o radical de “beatitude” – que foi o que despertou Kerouac para a sonoridade do vocábulo ao qual ele se vincularia pelo resto da vida.

Assim sendo, os beatniks farão de sua literatura uma espécie de trincheira, a partir da qual atirarão em várias direções. Ou seja, não se pode falar, hoje, em liberdade sexual, movimento de libertação feminina, liberdade religiosa ou liberdade dos direitos civis e contra o racismo sem aludir aos marginais da Geração Beat. Essa relação com a realidade se justifica tendo em vista que a narrativa Beat baseava-se na vida, não nos pensamentos. A espontaneidade da prosa de Kerouac, por exemplo, buscava uma aproximação com a revolução musical promovida pelo jazz bop, de Charlie Parker, Miles Davis, Lenine Tristano e outros; caracterizada pela liberdade de improvisação. Dessa forma, percebe-se que os protagonistas e figurantes das obras da Geração Beat possuem interesse autônomo, são personagens de si mesmos. Além da aproximação com o bop, os beatniks também flertaram com o expressionismo de Jackson Pollock.

A contribuição de Jack Kerouac e seu On the Road não se limita apenas à literatura, mas a toda uma geração que bebeu na fonte dos anos cinqüenta. De uma forma ou de outra, foram os beatniks que atiçaram, por exemplo, Bob Dylan e Jim Morrison a darem sua contribuição ao nosso cinzento mundinho tosco. O curioso, no entanto, é que passado tanto tempo, ainda perdure um questionamento que não mais se sustenta. Dos bolorentos gabinetes de algumas decrépitas academias, ainda se fomentam discussões acerca da importância ou não da produção da Geração Beat. A literatura da Geração Beat, assim como qualquer produção feita fora dos muros da academia, não necessita do aval de acadêmicos. A arte, marginal, ou rotulada do que quer que seja, estará sempre acima dos pré-estabelecidos cânones. É cômico, para não dizer ridículo, que determinados “estudiosos” insistam em considerar Jack Kerouac como um subliterato. Ao autor, resta, do além, gargalhar da incompetência de alguns crítica em ver o óbvio.

Mas não só de Kerouac se constitui a Geração Beat. Outro grande nome dessa geração é William Burroughs. O autor de obras como Junky e The Naked Lunch era, entre os demais, o mais velho e o mais experiente. Os demônios, assim como todas as paranóicas sensações que atormentam a cabeça de um dependente químico são ricamente relatadas em Junky, seu primeiro livro. Em The Naked Lunch, por sua vez, Burroughs retrata toda sorte de coisas que compuseram seus terríveis anos de vicio. Lá, é possível caminhar pelo universo dos traficantes, ver os mais horrendos e ameaçadores lagartos subindo e descendo paredes. Monstros, tarados e sodomitas dividem a mesma sombria viagem. E, conforme alguns, só quem viu o inferno bem de perto poderia retratá-lo tão fielmente como o fez Burroughs.

Embora as obras de Kerouac e Burroughs tenham dado poderoso destaque à prosa beat, a poesia também se mostrou através da pena de Allen Ginsberg. De características voltadas para o orientalismo e o ativismo político, a poesia de Ginsberg é muito influenciada pelas experiências alucinógenas do autor. Sua obra referencial é Uivo, Kaddish e Outros Poemas. O que se nota como leitmotiv da sua produção é o uso da primeira pessoa do singular, ou seja, a utilização de um eu que a tudo viu, que a tudo viveu, como testemunha do seu próprio tempo. Tal recurso confere à sua obra uma dimensão que é, ao mesmo tempo, lírica, intimista e épica.

Excetuando-se sua fase demasiadamente subjetiva, Allen Ginsberg procurou, ao longo da sua carreira, uma poesia com os pés no chão. Assim, conforme Cláudio Willer nas suas notas à edição brasileira de Uivo, Kaddish e Outros Poemas (1999), inúmeros estudos (e as palestras do próprio Ginsberg sobre sua criação poética) caracterizam-no como um ponto de encontro, lugar de diálogo entre William Blake e Walt Whitman, de um lado, e Ezra Pound e William Carlos Williams, de outro. Mas a vertente poética da qual está mais próximo é mesmo o objetivismo.

A esse importante movimento de contracultura imposto ao coração histórico-cultural dos Estados Unidos da América, outros nomes, tão indispensáveis quanto, também devem ser mencionados.
Assim, além de divulgar, inclusive editando alguns livros do grupo beatnik, Lawrence Ferlinghetti, dono da livraria City Lights, também escreveu algumas obras. Lembremos ainda de Gregory Corso e Ken Kessey e Charles Bukowsky. Esse último, o mais marginal de todos. Um beatnik que nunca se assumiu como tal.
Assim como a iconoclastia presente em Bukowsky e em toda a Geração Beat, o eterno desejo de dizer “não” aos sistemas que aprisionam e tolhem a liberdade estará sempre presente naqueles que aprenderam que andar pela margem pode ser muito mais prazeroso do que navegar por rios que levam sempre aos mesmos velhos portos.      

Nenhum comentário:

Postar um comentário