A História Geral e, especificamente a História do Brasil, causam em mim um sempre e continuado fascínio. Tenho muito interesse pelos grandes nomes que estão à frente dos acontecimentos históricos, mas tenho muito mais interesse pelos nomes que estiveram à margem destes acontecimentos. Nem por isso, no entanto, devem ser vistos como figuras menores. Entre tantos, ressalto as figuras do Chalaça, da Marquesa de Santos e do senhor Marrocos; por exemplo.
No ano de 2007, a Biblioteca Nacional publicou o volume quatro dos seus Cadernos da Biblioteca Nacional. Coleção das mais prestigiosas, Cadernos da Biblioteca Nacional tem prestado relevantes serviços à cultura brasileira, uma vez que suas publicações contribuem para uma compreensão da história e identidade do nosso país. O volume quatro dos Cadernos é denominado de O Bibliotecário do Rei - Trechos selecionados das cartas de Luís Joaquim dos Santos Marrocos. No mesmo ano, também se deu a publicação das Reflexões sobre a vaidade dos homens, de Matias Aires. No ano de 2009, ressaltamos a publicação de Senhora das imagens internas: escritos dispersos de Nise da Silveira. Já no ano de 2012, tem-se a publicação do trabalho O Japão, do escritor Aluísio Azevedo; apenas para citarmos alguns, na tentativa de reforçar a importância de publicações como as que estão sendo trazidas à lume pela Fundação Biblioteca Nacional.
O objeto principal do presente texto é o caderno que trata das cartas do senhor Marrocos, o bibliotecário do rei. Pouquíssimas são as informações existentes acerca dessa figura. Conforme texto na contracapa do volume que trata do seu epistolário: " Luís Joaquim dos Santos Marrocos nasceu em Lisboa, em 1771, e veio para o Brasil acompanhando a segunda remessa dos livros da Real biblioteca, núcleo original da Biblioteca Nacional. Ajudante das Reais Bibliotecas em Portugal, Marrocos foi nomeado pelo príncipe regente para organizar os manuscritos da Coroa, o que o levou a trabalhar no Paço e ter acesso a D.João, cujas mãos beijava todos os dias. Em 1821 foi promovido a encarregado da direção e arranjamento da Real Biblioteca, vindo a falecer em 1838, no Rio de Janeiro. Suas cartas são um raro testemunho sobre os notáveis da corte e a vida no Rio de Janeiro no começo do século XIX".
O volume em questão está dividido em três partes. A primeira, denominada de "cartas de um observador privilegiado", escrita por Marcus Venício Ribeiro e Mônica Auler é uma espécie de apresentação do volume, bem como do seu personagem principal. A segunda parte, de autoria de Rodolfo Garcia, é denominada de "Explicação". Sobre como as cartas foram parar na Biblioteca Nacional, Garcia afirma:
Os originais das cartas de Luis Joaquim dos Santos Marrocos, escritas do Rio de Janeiro a sua família em Lisboa, de 1811 a 1821, guardam-se na Biblioteca da Ajuda, na capital portuguesa. Por obsequiosa intervenção do eminente escritor sr. Luís Edmundo obteve a Biblioteca Nacional cópias autênticas dessas cartas, conservadas inéditas até agora [1938], e até agora só utilizadas por M. de Oliveira Lima, em seu grande livro Dom João VI no Brasil (1908). (GARCIA, 2007:13)
A terceira e maior parte é denominada de "trechos selecionados das cartas de Luís Joaquim dos Santos Marrocos. Como afirmam RIBEIRO e AULER (2007:9), em corroboração ao que afirma GARCIA (2007:13):
A edição das cartas de Luís Marrocos não é inédita. Em 1939 o historiador Rodolfo Garcia, então diretor da Biblioteca Nacional, retirou-as do esquecimento, na Biblioteca da Ajuda em Portugal, publicando-as na íntegra no volume 56 dos Anais da Biblioteca Nacional por ocasião do centésimo aniversário da morte do autor. Seu pai, Francisco José dos Santos Marrocos, era o responsável pela Biblioteca da Ajuda, onde o próprio Luís Marrocos também havia trabalhado antes de vir para o Brasil em 1811, acompanhando a segunda das três remessas do acervo da Real Biblioteca. (RIBEIRO E AULER, 2007:9)
As cartas de Marrocos nos servem para que compreendamos os enredos e desvelos de uma nação que mal começava andar com as próprias pernas. Do seu ponto de vista mais que privilegiado, é possível se ter uma noção de como se davam os hábitos, costumes, favores e benesses sob o comando de Dom João VI. Assim sendo, sobre a cidade do Rio de Janeiro, em sua carta de nº 56, de 28 de setembro de 1813, Marrocos afirma:
Nesta cidade e seus subúrbios temos sido muito insultados de ladrões, acometendo estes e roubando sem vergonha, e logo ao princípio da noite; de sorte que têm horrorizado as muitas e bárbaras mortes, que tem feito: em cinco dias contaram-se em pequeno circuito 22 assassínios, e em uma noite mesmo defronte da minha porta fez um ladrão duas mortes e feriu terceiro gravemente. Tem sido tal o seu descaramento, que até avançam a pessoas mais distintas e conhecidas, como foi o próprio chefe da polícia; o chefe de divisão José Maria Dantas recebeu por grande favor duas tremendíssimas bofetadas, por cair no erro de trazer pouco dinheiro, depois de lhe roubarem o relógio etc. Além disto têm degolado várias mulheres, depois de sofrerem outros insultos; o que tudo tem dado que fazer o corpo da polícia, e não sendo este suficiente para as rondas e patrulhas multiplicadas em todas as ruas, o intendente mandou armar e aprontar todas as justiças de paisanos para ajudarem os da polícia; mas os pobres aguazis até já foram acometidos e insultados pelas grandes quadrilhas de ladrões, que lhes tem dado coças. (Carta nº 56, 28 set. 1813).
O relato de Marrocos demonstra o quanto, mais de duzentos anos depois, suas cartas ainda estão atuais e merecedoras de estudos que abarquem não apenas a História, mas a língua, o léxico, a literatura e a cultura como um todo. As referidas missivas estão disponíveis para leitura e pesquisa no site da Fundação Biblioteca Nacional (www.bn.br). Ainda sobre a Real Biblioteca, sugerimos a leitura de A Longa Viagem da Biblioteca dos Reis: Do terremoto de Lisboa à Independência do Brasil (2008), de Lilia Moritz Schwarcz, com Paulo Cesar de Azevedo e Angela Marques da Costa, publicado pela Companhia das Letras.
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