terça-feira, 30 de setembro de 2014

A RELAÇÃO DA MISSÃO DA SERRA DE IBIAPABA

Por iniciativa de Inácio de Loyola (1491 – 1556), a Companhia de Jesus foi criada no ano de 1534. Contudo, somente por volta de 1537, juntamente com mais seis estudantes da Universidade de Paris, é que Loyola vai para Roma solicitar ao papa Paulo III autorização para criar a Societas Iesu, a Ordem dos Jesuítas. Autorização concedida, Inácio de Loyola para de peregrinar pelo mundo e se estabelece em Roma em 1538, tornando-se Superior-Geral da Companhia que acabara de criar. O referido religioso redige, então, as Constituições, documentos esses que regerão a Companhia a partir de 1554. Sob a liderança de Loyola, os missionários são enviados para os quatro cantos do mundo com o objetivo de levar a palavra de Jesus aos mais recônditos lugares. Contudo, o contato entre os missionários e seus superiores deveria ser mantido a qualquer custo. E assim, tendo em vista as dificuldades de comunicação, escolheram a carta como forma de contato. Embora os assuntos tratados nas cartas fossem os mais variados, com o tempo a carta se torna a principal forma de relatar os acontecimentos nas chamadas missões. Era através dela, da missiva, que todos deveriam compartilhar seus sucessos e suas dificuldades. Uma vez tratar-se a carta de um verdadeiro relatório, recebeu oficialmente o nome de Relação.

As narrativas produzidas sobre o Brasil colonial são caracterizadas por discorrerem sempre sobre os mesmo aspectos, ou seja, os hábitos dos nativos, as riquezas naturais, a fauna e a flora. E assim sendo, os documentos produzidos pelos jesuítas que por terras cearenses estiveram não fogem a regra. Entre eles, podemos citar a Relação do Maranhão, do padre Luiz Figueira e a Relação da Missão da Serra de Ibiapaba, cuja autoria, embora sem comprovação, seja atribuída ao padre Antonio Vieira.
Relação da Ibiapaba (pág. 1)
Existem duas versões conhecidas da Relação da Missão da Serra de Ibiapaba: a versão da Revista do Instituto Histórico, Geográfico e Antropológico do Ceará (www.institutodoceara.org.br) e a versão publicada em livro, no ano de 2006, pela editora portuguesa Almedina, com o nome de A Missão de Ibiapaba. A edição da Relação da Missão da Serra da Ibiapaba, do Instituto, constitui-se de cinquenta e três páginas impressas, numeradas do número oitenta e seis ao número cento e trinta e oito, disponíveis no tomo XVIII da referida Revista. Os assuntos a serem abordados ao longo do documento são previamente apresentados, uma vez que o corpo da Relação traz dezessete subdivisões, indicando cada um dos assuntos a serem tratados. O texto de Padre Antonio Vieira se inicia com a seguinte observação, posta logo abaixo do título do documento: “primeiros Missionários da Companhia de Jesus que no Brazil passarão por terra ao Maranhão: seus trabalhos. Morre na empreza o venerável padre Francisco pinto, e outros” (p.86). Tendo em vista os negócios entre a Igreja Católica e a coroa portuguesa, não é com bons olhos que nosso narrador vê a presença dos holandeses em território nacional, bem como sua relação como os nativos tabajaras. Mas não eram apenas os holandeses a ocupar terras nordestinas. A gênese da formação do povo brasileiro, a miscigenação, algo que só bem mais tarde seria observado por Gilberto Freyre, já era devidamente notada por Vieira, o qual mais uma vez não vê com bons olhos a tal miscigenação. Deduz-se que, para ele, toda essa presença estrangeira em nada contribuía para a efetivação dos objetivos da Companhia em terras nordestinas. Eis o que afirma o religioso:

... eram verdadeiramente aquellas aldeãs uma composição infernal ou mistura abominável de todas as seitas e de todos os vícios, formada de rebeldes, traidores, ladrões, homicidas, adúlteros, judêos, hereges, gentios, atheus, e tudo isto debaixo de nome de Christãos, e das obrigações de Catholicos. (VIEIRA, 1904:94).

Certamente que o posicionamento do Padre Antonio Vieira não é apenas seu, mas de toda uma Europa sedenta por conquistar cada vez mais espaço e de uma Igreja descobridora das benesses advindas das conquistas. Assim sendo, a história do Ceará e a cultura daí surgida estão impregnadas pelos resquícios da ambição eurocêntrica, a derrama do sangue nativo e a imposição de uma fé que nem de longe era a desejada. Embora não se justifique, o povo nativo cearense não foi o único “bárbaro” a sofrer tal violação. Por toda a América Latina, muitos povos foram invadidos, violados, extirpados de suas famílias e expropriados de seus bens e, muitas vezes exterminados em nome de uma cultura que não desejavam para si e em nome de uma fé que não era a sua. Documentos como a Relação da Missão da Serra da Ibiapaba, se lidos detidamente, dizem muito dessa dominação histórico-léxico-cultural a qual o povo cearense especificamente, e o povo latino-americano, genericamente, esteve submetido.
Além dos aspectos históricos e culturais, a Relação da Missão da Serra da Ibiapaba também possibilita o estudo da língua sob suas mais variadas vertentes. Que sejam: a fonética, a morfologia, a sintaxe e o léxico. Em relação ao documento mais antigo, a versão da editora Almedina mantém o mesmo texto e dá textualmente ao padre Antonio Vieira a autoria do documento. Convém ressaltar que o documento original não traz a assinatura do referido religioso. Excetuando-se esse detalhe, a edição se notabiliza por trazer um valioso prefácio de autoria de Eduardo Lourenço e um posfácio não menos relevante, assinado por João Viegas.

          Chegado ao século XXI o homem ainda luta para conseguir ter seus direitos respeitados; seja no que diz respeito à sua liberdade individual, à liberdade de expressão ou à assunção da sua identidade. Isso, contudo, não tem se mostrado tão simples assim. A civilização do espetáculo tal qual analisada por Vargas Llosa (2013), mas já anunciada como sociedade do espetáculo, por Guy Debord (1967) tem causado intrigante interferência naquilo que se convencionou chamar de cultura. Se o conceito de cultura estava ligado ao ato de cultivar, como bem nos lembra Raymond Williams (2007), não nos parece mais ser bem assim. Instaurou-se, na verdade, uma cultura do efêmero, do descartável, que acaba por impedir que se perceba o que é realmente relevante para a constituição de um estado que se pretenda nação, ou seja, de um povo que se pretenda cidadão.

Padre Antonio Vieira
Analisando por essa ótica, percebe-se que um documento como a Relação da Missão da Serra de Ibiapaba é de relevante importância para a compreensão da gênese do povo cearense, por possibilitar seu estudo através de diferentes áreas do conhecimento. É, certamente, objeto para a Linguística, a História, a Historiografia, a Etnografia e a Filologia; somente para citarmos algumas áreas.
Ao longo dessa breve resenha, tentamos fazer algumas considerações acerca do referido documento, mas cientes da impossibilidade de abarcá-lo como um todo, tendo em vista sua amplitude. A Relação da Missão da Serra de Ibiapaba é um documento proporcionador de aberturas para inúmeros estudos que contemplem a língua, a linguagem, o discurso, a história, a cultura, bem como suas múltiplas acepções, ações, atividades, ressignificações e usos. 



Sobre Padre Vieira na Ibiapaba:

 http://www.opovo.com.br/app/colunas/anamiranda/2012/07/28/noticiasanamiranda,2886802/padre-vieira-na-ibiapaba.shtml


sábado, 20 de setembro de 2014

DOS MILAGRES DE JORGE

Contar uma história, aparentemente pode ser um algo muito simples. Para alguns pode até ser a coisa mais fácil do mundo. No entanto, não é bem assim, uma vez que ao se contar uma história, há toda uma convenção de valores que devem ser lembrados, revistos e recriados, dando àquela história o arcabouço necessário para agradar a leitores gregos e troianos (russos e ucranianos também).

Jorge Amado

Há aqueles autores que, de uma sentada só, escrevem histórias que nos provocarão de uma forma ou de outra. Por outro lado, há aqueles que demoram dias, meses e até anos para compor seus textos, os quais sairão formalmente impecáveis, mas que serão incapazes de mover sequer uma única sobrancelha de um leitor para lá de hiperativo. Há, ainda, em alguns autores, principalmente nos mais jovens, uma necessidade imensa de escrever e publicar. Ao agir assim, impulsionados pelo ímpeto, os textos acabam saindo mal acabado, com aquela aparência de descaso com a forma e o conteúdo. Mais vale deixar o texto dormitar em gavetas, para que amadureça até estar pronto para ser dado ao leitor. A pressa, se o autor não demonstrar traços de genialidade, apenas atrapalhará na feitura de qualquer que seja o trabalho. A escrita precisa ser maturada, dormida e, somente acordada quando esta mesma assim o desejar. Se, como nos diz Paulo Freire (1921 – 1997): “a leitura de mundo precede a leitura da palavra”, também podemos afirmar que a escrita da palavra requer antes uma leitura aprofundada do mundo com todas as nuanças que lhe constituem.     


A experiência e a maturação do autor no exercício da sua escrita podem muito bem ser observadas na história que Jorge Amado (1912 – 2001) nos conta e a qual denominou de O milagre dos pássaros (1997). Figura das mais representativas do Modernismo brasileiro, Amado faz parte dos autores didaticamente inseridos na chamada Geração de 30 do referido movimento, dominada basicamente por autores da região Nordeste, estando ao lado de Rachel de Queiroz, Graciliano Ramos, José Lins do Rego; bem como do gaúcho Érico Veríssimo. Autor de inúmeras obras traduzidas para mais de quarenta idiomas, Amado é, sem sombra de dúvidas, um grande contador de histórias. Das suas obras emergem os velhos marinheiros, os negros, os meninos de ruas, as prostitutas, os bêbados e os vagabundos como expoentes máximos daquela diversidade tão cedo compreendida por Gilberto Freyre (1900 – 1987) e devidamente discutida em sua obra máxima Casa Grande & Senzala (1933). Mas, “fugindo” um pouco das suas temáticas mais recorrentes, Jorge Amado também enveredou por temas mais caros como, por exemplo, a repressão militar durante o Estado Novo (1937 – 1945), tal qual está posto em Os subterrâneos da liberdade, obra em três volumes (Os ásperos tempos, Agonia da noite e A luz no túnel), de 1954. Considerado um dos romancistas mais importantes da língua portuguesa, Jorge Amado também fez das suas ao incorrer pela arte do conto. Falamos aqui, especificamente, do conto O milagre dos pássaros, publicado pela editora Record, no ano de 1997. O título do conto em questão, faz uma referência ao “Milagre dos sete pães e peixes”, tratado no Evangelho de Mateus (14:13-21) e que também aparece nos Evangelhos de Marcos (6:31-44), Lucas (9:10-17) e João (6:5-15), apresentando algumas diferenças. O conto de Jorge Amado, no entanto, não tratará de milagres do tipo que alimentam famintos com a multiplicação de peixes e pães, mas de outro tipo. A epígrafe de abertura da narrativa diz: “... do recente milagre dos pássaros acontecido em Terras de Alagoas, nas ribanceiras do rio São Francisco ... contado por Jorge Amado”. 

A narrativa de Amado tem com cenário a cidade de Piranhas, às margens do rio São Francisco e conhecida por sua muralha de pedras intransponível. A história, bem ao estilo do autor de Capitães da areia (1937), é narrada em terceira pessoa e traz como personagens principais Ubaldo Capadócio (trovador e conquistador), capitão Lindolfo Ezequiel (pistoleiro com mais de trinta mortes nas costas) e sua legítima esposa, Sabô (mulher reconhecida pela graça do corpo, andar de dança e bunda em despropósito...).

Ingredientes como esses, os quais nos fazem lembrar Dona Flor e seus dois maridos (1966), são para lá de explosivos (na verdade, cômicos), quando postos no caldeirão da literatura e misturados pelo amado bruxo. O conto de Jorge Amado tem trinta e sete páginas e é de agradável leitura. O enredo escolhido pelo autor aproxima sua narrativa de textos como Auto da Compadecida (1955), de Ariano Suassuna (1927 – 2014) e Lisbela e o Prisioneiro (1964), de Osman Lins (1924 -1978), apresentando ainda aspectos do realismo mágico como elementos de sustentação da narrativa. 

Os pássaros me dizem que Ubaldo Capadócio, ainda hoje, faz a alegria de algumas freiras em um convento em Sergipe. Será? Se mais não o digo é para não dar detalhes e nem comprometer a leitura de narrativa tão agradável e, literalmente, maravilhosa. Salve, Jorge!

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

OS AMARELOS PERTO DOS VERDES

Era o ano de 1952. No dia 23 de maio, de Paris, o pintor Antonio Bandeira (1922 – 1967) escrevia ao colega Zenon Barreto (1918 – 2002), fazendo algumas observações sobre a pintura do amigo. Dizia o mestre:

Acho que seus quadros possuem harmonia de formas e de desenhos e uma certa sensibilidade na escolha das cores. Porém gostaria que você trabalhasse mais na mistura das cores primárias, quero dizer, pacientasse mais na mistura das sete cores (o arco-íris). Creio que ainda é cedo para os cinzas, verdes e rosas. Acredito mesmo que você poderia prolongar um pouco mais aqueles seus quadros meio ‘fauves’ e trabalhar demasiadamente na matéria, trabalhar até ficar exausto (a luta física com o quadro perto de nascer). Muito cuidado com os amarelos perto dos verdes, também muito cuidado na mistura dos lilases. O amarelo é talvez a cor mais perigosa e precisa, na composição, ser jogada com maestria. Por isso gostaria que você trabalhasse mais o quadro. Um quadro deve ser ‘cansado’ (no trabalho da matéria) ou ‘fresco’ (um nascimento repentino), nunca jovial. Quanto ao desenho você o trabalhe sempre que possa. Desenhar todo o tempo, pensar desenho, ver as coisas em desenho (...). Sei que isso tudo é difícil e v. deve me achar meio cacete. Não dou conselhos, nunca os dou a ninguém, mas é claro que desejo ver progresso na sua arte (...). (BANDEIRA apud ESTRIGAS, 2001:75)

Começo com a presente citação do pintor Antonio Bandeira, uma vez que a análise crítica que empreenderemos recai sobre o primeiro trabalho de um jovem escritor. Trata-se do livro de contos Odisseu (2013), do estreante Márcio Moreira. Não é objetivo da presente resenha, no entanto, traçar uma espécie de Cartas a um jovem poeta, pois Márcio Moreira não é Franz Kappus e nós, nem de longe, nos equiparamos à grandiosidade de Rainer Maria Rilke (1875 – 1926). Contudo, o trabalho de Márcio Moreira nos chama atenção por ser mais um contista a aportar em terras tão largamente habitadas por inúmeros outros autores dedicados à arte da história curta. Refiro-me ao Brasil, em geral e; mais especificamente ao Ceará, terra de Rachel de Queiroz e Moreira Campos, entre vários outros.

O Odisseu, de Márcio Moreira é uma coletânea de contos (erroneamente denominado de “romance” na ficha catalográfica), publicada de forma independente no ano de 2013, contando com capa e editoração do próprio autor. O trabalho traz ainda “edição” (seja lá o que isso queira dizer!) e apresentação de Amanda Jéssica M com fotografias de Mel Andrade e Arquivo pessoal. Márcio Moreira nasceu no ano de 1989 e, como ele mesmo diz: “com um pé em Fortaleza e o outro no Aracati”.

O livro de Márcio Moreira é composto de treze contos, sendo em sua maioria, minicontos. Os contos estão denominados e organizados na seguinte ordem: “Último capítulo” (p.11), “Fossem reais os pixels...” (p.13), “Louva-a-Deus” (p.17), “Sem título” (p.18), “Luz no fim do túnel” (p.21), “Oficina de Assessoria de Comunicação” (p.24), “Pirata” (p.28), “Cheiro de álcool” (p.31), “Bíblica” (p. 33), “Notas” (p.36), “Cães e Gatos” (p.39), “Odisseu” (p.41) e “Faróis” (p.46). Dos treze contos da coletânea, apenas cinco, aproximadamente, ocupam mais de uma página. O que percebemos é que Márcio Moreira demonstra certo controle acerca da arte do miniconto, alcançando a concisão e a essencialidade apontadas por Edgar Allan Poe (1809 – 1849) e Anton Tchekhov (1860 – 1904), o que pode ser comprovado a partir da leitura das narrativas “Cheiro de álcool” (p.31) e “Bíblica” (p.33), por exemplo. Por outro lado, o autor sempre derrapa quando se aventura pelos mares das narrativas maiores, como no caso de “Luz no fim do túnel” (p.21) e do próprio “Odisseu” (p.41). Isso não constitui um problema, pois devidamente “ajustado” pode se tornar uma qualidade das melhores; uma vez que são poucos os contistas reconhecidos por dominar a arte das micronarrativas. O principal nome nesse caso é, sem dúvida, Dalton Trevisan. No Ceará, terra na qual o contista mantém um dos seus pés, podemos apontar alguns dos contos de Pedro Salgueiro, Geórgia Cavalcante Carvalho, Raymundo Netto, Vânia Vasconcelos e Carmélia Aragão.

Mas acredito, tal qual Bandeira em relação à obra de Zenon, que Márcio Moreira deva trabalhar mais na matéria, uma vez que seu texto ainda é muito jovial. “Trabalhar até ficar exausto”, ou seja, escrever e reescrever até conseguir manipular com maestria todas as cores da paleta chamada literatura. É preciso, como bem advertia o mestre, ter “muito cuidado com os amarelos perto dos verdes”. Muitas vezes, na ânsia de dar um rebento ao mundo, o escritor estreante erra a mão na inexatidão de algo que poderia ser bem mais interessante se melhor trabalhado. Não custa lembrar que vários foram os anos que demoraram a trazer Odisseu de volta à sua Ítaca. Anos que o fizeram ver o mundo, conhecer as coisas e entender a vida sem cair no canto doce e enganoso das sereias.


Assim sendo, parafraseando o autor de Cidade queimada de sol, um texto (o conto, no caso) precisa ser recorrentemente mais trabalhado até que atinja seu ápice de exigência estética. Um texto literário precisa ser “cansado” ou “fresco”, nunca jovial. É necessário gestá-lo, nutri-lo e vivê-lo intensamente até que ele esteja pronto para ser dado aos olhos do mundo. “Não somente os olhos da cara, mas também no cérebro e no coração”. O Odisseu, de Márcio Moreira é a carta de apresentação de um contista que, aprendendo a manipular os amarelos e os verdes da arte de escrever, poderá nos legar futuros grandes trabalhos. Para tanto, bastará estar atento para saber a hora certa para lançar mão dos cinzas, verdes e rosas. Caso contrário, não mais que de repente, poderá ser atingido por um disparo de uma baladeira qualquer e cair, em espirais descendentes, infinitesimais e eternas.

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

OSMAN LINS: A SAGRAÇÃO DA PALAVRA

Osman Lins
A literatura brasileira é fecunda de grandes obras e de grandes autores. Contudo, uma vez que o gosto pelas artes, especificamente pela literatura, não é difundido entre a população, muitos autores acabam se tornando famosos desconhecidos dentro do seu próprio país. Isso é compreensível, uma vez que as políticas culturais são tímidas, as escolas capengas e a mentalidade nacional, tacanha. E, no meio desse RAP do crioulo doido, ainda há a velha questão dos escritores “velhos” que não leem os “novos” e os “novos” que não leem os “velhos”. Assim sendo, grandes autores nacionais (universais, pelos temas que abordam) ainda precisam ter suas obras amplamente exploradas, uma vez que constituem relevantes contribuições para a cultura e para a sociedade brasileira.

Entre tantos e tantos autores desse quilate, ressalto Osman Lins (1924 – 1978), escritor pernambucano, considerado um “renovador de estruturas, linguagem, temas e conceitos literários”. Apenas para termos uma ideia, a obra do autor pernambucano abrange o conto (Os gestos, 1957; Nove novena (1966), romance (O visitante, 1955; O fiel e a pedra, 1961; Avalovara, 1973, A rainha dos cárceres da Grécia, 1976), teatro (Lisbela e o Prisioneiro, 1964; Guerra do Cansa-Cavalo, 1966), novela (A ilha no espaço, 1964) textos para a televisão (Casos especiais de Osman Lins, 1978), ensaios (Guerra sem testemunhas, 1969; Lima Barreto e o espaço romanesco, 1976) e viagens (Marinheiro de primeira viagem, 1963; La paz existe?, 1977); entre inúmeros outros trabalhos, sem considerarmos o que ainda há de inédito nos arquivos sob a guarda do Instituto de Estudos Brasileiros – IEB, da Universidade de São Paulo.

Embora tenha vivido muito pouco, Osman Lins nos legou uma obra de vastíssimo fôlego e, no que diz respeito às temáticas que aborda, opta por não fazer concessões. Dessa forma, a linguagem crua, por vezes ácida e mordaz das suas narrativas está em consonância com seu projeto de literatura. É o que podemos observar, por exemplo, na novela A ilha no espaço, de 1964. No que concerne ao texto dramatúrgico Lisbela e o Prisioneiro, também publicado no ano de 1964, o autor “alivia” na linguagem, a qual se mostra simples, mas não menos cáustica, com o intuito de atender aos requisitos do texto cômico. Nem por isso, no entanto, temas como a tortura, a repressão e o abuso de autoridade, deixarão de ser devidamente abordados. A ilha no espaço foi reeditada no ano de 1978 sob o título de Casos especiais de Osman Lins. O livro publicado pela editora Summus, traz ainda os textos Quem era Shirley Temple e Marcha Fúnebre, sendo esse o último livro publicado ainda em vida do autor. As três novelas constantes na referida edição também foram adaptadas pela Rede Globo de Televisão, exibidas entre os anos de 1975 a 1977.

Em A ilha no espaço, Osman Lins discorre sobre a solidão do homem contemporâneo em meio ao turbilhão de desejos e ambições que se tornaram razão máxima da existência de muitas pessoas. O espaço da novela em questão é a cidade de Recife, e o enredo gira em torno das agruras da personagem Cláudio Arantes Marinho, morador do luxuoso edifício Capibaribe. Para chegar até lá, a personagem empenhou até seu último centavo, para satisfazer mulher e filhas. Quando tudo acaba por dar errado e o Capibaribe se torna um edifício fantasma, Arantes é a única alma a vagar pelos andares do velho prédio. Arantes é agora uma ilha dentro da ilha que agora é o seu apartamento, que é uma ilha dentro do edifício, que agora também é uma ilha no espaço da grande cidade. A ilha no espaço aborda desde a banalidade do consumo às questões existenciais do ser humano; esse homem-ilha que contradiz a máxima de John Donne (1572 – 1631), quando afirma que nenhum homem é uma ilha. Dessa forma, a narrativa osmaniana aponta para questionamentos acerca do isolamento do homem, misto de solidão e vazio, impondo-nos a decifração do enigma que nos é posto pela sociedade contemporânea. E entre o “decifra-me ou te devoro”, embora pendendo mais para o “devorar”, a questão ainda se mostra em aberto.

Por sua vez, Lisbela e o Prisioneiro, como bem afirma Sandra Nitrini (p.113) no posfácio à edição de 2003, publicada pela Editora Planeta, surgiu como resultado do curso de Dramaturgia da Escola de Belas Artes de Recife. A questão é que Osman Lins participara do I Concurso Nacional da Companhia Tônia-Celi-Autran. Adolfo Celi foi o primeiro diretor artístico do TBC. Lins concorreu com a peça O Vale Sem Sol, em 1958, recebendo apenas menção honrosa. Conforme afirma a professora Sandra Nitrini, Osman Lins ficou Insatisfeito com sua incursão como dramaturgo, considerando-a deficiente. Assim, matricula-se no mesmo ano na Escola de Belas Artes de Recife, onde vem  a ser aluno de Joel Pontes, Hermilo Borba Filho e Ariano Suassuna. Numa entrevista, Osman Lins mencionará este último como possível influenciador no que diz respeito às normas de composição de Lisbela e o prisioneiro. Lisbela e o Prisioneiro foi escrito no período de 25 de julho a 09 de setembro de 1960, sendo encenada pela primeira vez no ano de 1961, no Rio de Janeiro. Sua publicação, no entanto, só ocorreu no ano de 1964.

A peça, uma comédia de caráter (ou de caracteres), conta com quinze personagens ao todo. São eles, na ordem de entrada em cena: Jaborandi (soldado e corneteiro), Testa Seca (preso), Citonho (velho carcereiro), Paraíba (preso), Tem. Guedes (delegado), Leléu ( aramista e prisioneiro), Juvenal (soldado), Heliodoro (cabo de destacamento), Lisbela (filha do tenente Guedes), Dr. Noêmio (advogado, noivo de Lisbela), Tãozinho (vendedor ambulante de pássaros), Frederico (assassino profissional), Lapiau (artista de circo e amigo de Leléu). Dois soldados, personagens mudos. A peça está organizada em três atos (estrutura comum às comédias). No primeiro ato tem-se uma espécie de apresentação geral das personagens. No segundo, o leitor toma conhecimento das questões existenciais das personagens, especificamente do prisioneiro Leléu. No terceiro ato, tem-se o desenrolar da ação, onde são selados os destinos das personagens. Como é recorrente nos textos de comédias, tem-se um final feliz com Lisbela e o prisioneiro Leléu ficando juntos. O cenário da peça é a cadeia pública, em Vitória de Santo Antão, em Pernambuco, cidade natal de Osman Lins. No que concerne à linguagem observa-se o uso da linguagem comum ao interior do Nordeste do Brasil, mais especificamente do interior de Pernambuco. E essa, por sua vez, é criativamente manipulada por Osman Lins, quando este a transforma em indispensável objeto do riso na peça em questão. A linguagem, no texto escrito, bem como a linguagem corporal, quando da encenação da peça, praticamente constituem-se em outros “personagens”.
 
O enredo gira em torno de Lisbela, filha do tenente Guedes, delegado da Cadeia de Santo Antão, que se envolve amorosamente com o prisioneiro Leléu, uma espécie de Don Juan nordestino. Daí o nome da peça. No dia do seu casamento com o Dr. Noêmio, advogado e vegetariano, Lisbela foge com Leléu. Ao optar pelo artista de circo preso, abandonando a “estabilidade” que teria com o advogado, representante do estabelecido e da segurança, Lisbela assume o risco, subvertendo os valores vigentes na sociedade patriarcal na qual está inserida. Convém ressaltar que Lisbela é a única mulher em cena. Outras mulheres são apenas mencionadas.

A utilização da comédia como forma de exposição do texto, aponta para a mestria de um autor que, mesmo situando seu drama em um contexto regionalista, o faz sabendo estar ao mesmo tempo situando-o no contexto do drama universal; uma vez que as dores, desejos e angústias das personagens Lisbela e Leléu também o são de todo homem e de toda mulher em qualquer lugar do mundo. O riso, recurso estilístico recorrente em Lisbela e o Prisioneiro (1964)  apresenta-se, então, como uma das únicas formas de subversão legada àqueles  que se recusam a se submeter aos ditames impostos pela sociedade. O riso, tal qual dito em O Nome da Rosa (1980), de Umberto Eco, mata o temor. 

É por essa razão, entre inúmeras outras que, Lisbela e o Prisioneiro, de Osman Lins, permanece atual, universal e atemporal e assim o será enquanto houver alguém que, mesmo pelos cantos da boca, insista em rir do que quer que seja. 


SOBRE OSMAN LINS E SUA OBRA:

1. ANDRADE, Ana Luíza. Osman Lins: crítica e criação. São Paulo: Hucitec, 1987.
2. IGEL, Regina. Osman Lins: uma biografia literária. Brasília: T.A. Queiroz, 1988.
3. SILVA, Odalice de Castro. A obra de arte e seu intérprete. Fortaleza: EUFC, 2000.
4. FERREIRA, Ermelinda. Cabeças compostas. São Paulo: EDUSP, 2005.
5. FARIAS, Zênia de & FERREIRA, Ermelinda. 85 anos: a harmonia de imponderáveis. Recife: EUFPE, 2009.