Em seu mais recente
romance, Um rio, uma guerra (2016), publicado
pela editora Kan, Luiz Taques opta por conduzir a narrativa pelos caminhos do
romance histórico. Sobre isso, as palavras de Lukács acerca da relevância do
romance histórico nos parecem oportunas para a compreensão da narrativa de
Taques. Afirma o autor:
No romance
histórico (...) trata-se de figurar de modo vivo as motivações sociais e
humanas a partir das quais os homens pensaram, sentiram e agiram de maneira
precisa, retratando como isso ocorreu na realidade histórica. E é uma lei da
figuração ficcional (...) que, para evidenciar as motivações sociais e humanas
da ação, os acontecimentos mais corriqueiros e superficiais, as mais miúdas
relações (...) são mais apropriadas que os grandes dramas monumentais da
história mundial. (LUKÁCS, 2011, p.60)
Para alguns, no
entanto, nada há na literatura que possa contribuir para os estudos
historiográficos. Para outros, porém, os dois campos são tão próximos quanto
complementares. Se por um lado, a História tem recorrido à Literatura como
fonte de pesquisa, a recíproca é mais do que verdadeira. Assim, sobre a vã
discussão acerca da disputa inócua produzida por alguns representantes das duas
áreas de conhecimento, convém ressaltarmos o que afirma Massaud Moisés (2000)
acerca de Heródoto e a relação entre fato e ficção:
Heródoto,
considerado o pai da História, misturava pormenores curiosos, propiciados por
suas andanças, aos relatos míticos, e amparava-se tanto nas fontes escritas
como na transmissão oral, não raro assumindo perante os acontecimentos, graças
à liberdade inventiva (que mal permite saber onde para a verdade e onde
principia a mentira), a perspectiva de um autêntico ficcionista. (MOISÉS, 2000,
p. 166)
Foto de Regina Utsumi |
O romance em questão está
organizado em treze capítulos, em um total de cento e oito páginas. Os
personagens principais não são mencionados por nomes. São apenas a “mãe”, o
“filho” e o rio. Há ainda, entre outros, a senhora, a fofoqueira, o capelão, o
goleiro, a professora, o ex-marido, o sobrinho do ex-marido e o velhinho. Taques
situa sua narrativa na fronteira oeste do Brasil, em Corumbá (MS), cidade
invadida e ocupada por tropas paraguaias durante dois anos, de 1865 até 1867
(alguns historiadores afirmam que teriam sido três anos, de 1864 até 1867). O
pano de fundo da narrativa é exatamente a Guerra do Paraguai, a qual teve
início com a apreensão, pelo Paraguai, do barco a vapor brasileiro “Marquês de
Olinda”, no dia 11/11/1864; tendo se tornado um dos conflitos mais sangrentos
da história da América do Sul, responsável pelo extermínio de mais da metade da
população paraguaia. Só crianças, foram assassinadas por volta de quatro mil.
Em Um rio, uma guerra; Taques muda os nomes dos acontecimentos, das
personagens históricas; topônimos e antropônimos, salpicando com cores de
ficção alguns dos fatos mais tristes da história do Brasil. Assim sendo,
Paraguai vira “Pararaca”. A Guerra da Tríplice Aliança passa a ser chamada de
“Trífida Coalizão da Dubiedade”, A retirada de Laguna se torna “O abandono da
Lagoa”, o Marquês de Olinda recebe a denominação de “Marquês do Centro-Oeste”,
Solano Lopes é o “tirano de Pararaca”e o Cel. Carlos de Morais Camisão passa a
ser o comandante “Pijamão”; enquanto a cearense Jovita Feitosa surge como
“Rosita”, Caxias como o general maçom e Iur Asobrab é o anagrama para Rui Barbosa.
A narrativa de Luiz Taques é um
grito de denúncia dos efeitos que a estupidez das guerras, dos massacres e
genocídios causam no ser humano, independentemente do período histórico no qual
estejam albergados. No caso da Guerra do Paraguai não foi diferente e, até hoje,
as nações envolvidas, principalmente o Paraguai, pagam um preço muito alto pelo
desejo de imposição da força em detrimento de outras formas de solução de
conflitos. E assim sendo, se erigem governos e governos sobre montanhas de
cadáveres, ontem e hoje. Dessa maneira, pelas linhas narrativas de Um rio, uma guerra; percebe-se também a denúncia da condição
feminina, esvaziada do empoderamento e do direito básico à liberdade, bem como
a violação dos direitos das crianças. A narrativa ainda discorre sobre o
racismo, os males das ditaduras e o posicionamento da imprensa, com seus
jornais chapas-branca e seus periódicos puxa-sacos. A justiça, e seu Lawfare, como modus operandi, também recebe atenção na narrativa.
Como dito, muitas são as
referências político-culturais nesse mais recente trabalho de Luiz Taques. Como
não perceber Dadá Maravilha, no goleiro, em seu desejo de, tal qual um
beija-flor, parar no ar e “ir lá, no cantinho, e, com as pontas dos dedos,
mandar a bola para corner...”? Como não identificar as leituras do autor
quando, ao estilo de Dalton Trevisan, diz: “nas noites de breu ou de luar, o
padre se revelava, ah, meu Deus, um violentador”. E ainda a presença intertextual no romance em análise, da obra A
retirada de Laguna (1871), do Visconde de Taunay.
Em Um rio, uma guerra (2016), Luiz Taques retoma o rio como personagem
principal, assim como fizera em Pedro, de 2013. Na atual narrativa, o rio, por sua dinâmica natural, é
posto em oposição à situação de paralisia da cidade. Embora aquele rio (o rio
Paraguai) já não seja mais o mesmo (mãe e filho também já não o são), as
histórias que ele conta e as lembranças que mantém se cristalizaram na memória
dos habitantes mais velhos da cidade; memórias tais que quase não são
alcançadas pelos mais jovens. Mãe e filho percebem o mesmo rio por diferentes
olhos. E se em Érico Veríssimo a mulher é associada a terra (Ana significa
“terra” em hebraico. Lembremos da personagem Ana Terra), em Luiz Taques a
mulher é associada à imagem do rio em toda sua dádiva e esplendor.
Há, certamente, muito mais
a ser dito sobre Um rio, uma guerra.
Contudo, a brevidade da presente resenha nos impede de irmos além. Deixamos, no
entanto, a sugestão da leitura desse maravilhoso trabalho do escritor de
Corumbá (MS) que, assim como os rios que encontramos, parafraseando João Cabral
de Melo Neto, vão seguindo com a gente, sempre.