Dizem que a frase “o Brasil
não é para amadores” teria sido cunhada pelo maestro Tom Jobim. Que seja! Mas
ela também poderia muito bem ter sido dita por Tim Maia ou por Nelson
Rodrigues, analistas sempre atentos aos (des)caminhos dessa nossa inigualável
nação. O fato é que, para quem não é profissional, conhecedor das redes que
tecem o modus vivendi tupiniquim, viver no Brasil tem se tornado a cada novo dia
uma verdadeira epopéia, um “salve-se quem puder”.
E é a partir da observação
dessa realidade cada vez mais pesada, que Ricardo Lísias constrói seu mais
recente romance denominado de A vista
particular (2016), publicado pela editora Alfaguara. A narrativa está estruturada
em dez partes, sendo que cada uma dessas partes é constituída de dez capítulos,
todos muito breves em questão de tamanho. Cada uma das partes que compõem a
obra é iniciada por um breve resumo acerca daquilo que será tratado naquela
parte. Essa estratégia do resumo anteceder o capítulo, também pode ser
observada em O inimigo do rei (2006), de Lira Neto, por exemplo. No decorrer da narrativa, o narrador costuma dialogar com o leitor, podendo-se observar a
presença do que chamamos aqui de uma “metaprosa” ou “metalinguagem”. O livro
inteiro de Ricardo Lísias tem cento e vinte e seis páginas. A belíssima ilustração
da capa, a qual dialoga com a proposta da narrativa, é de Celso Koyama.
A
vista particular é uma narrativa de ficção escrita em uma
linguagem direta, clara e objetiva; ambientada na cidade do Rio de Janeiro, com
ênfase na comunidade Pavão-Pavãozinho; narrativa esta na qual a própria cidade
do Rio de Janeiro também é personagem. A narrativa de Ricardo Lísias é toda ela
recheada pela ironia, pela sátira, bem como pela acídia (tão recorrente em
Samuel Beckett). Todos esses ingredientes “juntos e misturados” resultam em uma
estridente crítica social à maneira como as coisas se dão no Brasil, no qual o
Rio de Janeiro é tomado como um microcosmo de uma situação que já se
generalizou.
No que diz respeito à relação vida e arte, parece-nos que é uma preocupação que não encontra abrigo na cabeça de Lísias. Seja como for, sua literatura, tal como se apresenta na obra em questão, se mostra capaz de intervir, de maneira direta e incisiva, sobre o meio social no qual se insere.
No que diz respeito à relação vida e arte, parece-nos que é uma preocupação que não encontra abrigo na cabeça de Lísias. Seja como for, sua literatura, tal como se apresenta na obra em questão, se mostra capaz de intervir, de maneira direta e incisiva, sobre o meio social no qual se insere.
A narrativa se desenrola a
partir do artista José de Arariboia, homem de trinta e cinco anos, artista
plástico, morador de Copacabana, filho de banqueiro. Aqui, convém ressaltar que,
na história do Brasil, Arariboia foi o índio que lutou ao lado dos portugueses
na conquista da Guanabara, quando estes enfrentaram os tamoios e os franceses,
no ano de 1567. Arariboia é, assim, considerado o fundador da cidade de
Niterói, pois foi nas terras que herdou como recompensa que a cidade surgiu. A
lexia “arariboia” é uma corruptela de “araramboia”, ou seja, trata-se de uma serpente
amazônica, não peçonhenta, popularmente conhecida como “jibóia-verde”. Assim
como a jibóia-verde, que também pode ser chamada de cobra-papagaio ou
periquitamboia; José de Arariboia também muda de nome ao longo da narrativa. Primeiramente
muda para Zé Arariba e, na sequência, para Arara. Assim como a jibóia-verde,
José de Arariboia é calmo, avoado e distraído.
Ricardo Lísias |
O artista plástico José de
Arariboia, apesar de críticas favoráveis ao seu trabalho, ainda não deslanchou
enquanto tal, o que só ocorrerá a partir de um happening (ou seria uma performance?),
que mudará consideravelmente os rumos da sua vida e da sua arte. A partir daí,
a narrativa passa a conduzir o leitor pelos caminhos dos debates que se dão
acerca do deva ser compreendido como arte. Zé Arariba percebe que a apreensão
da realidade para alguns é apenas a realidade crua, enquanto para outros pode
ser tão surreal que se confunde com a própria arte. As exposições e instalações
que serão concebidas pela personagem são reproduções da dor e da miséria de
muitas pessoas, mas que vende feito água. Em outras palavras, o artista descobre
que a miséria humana pode, sim, ser transformada em objeto de consumo.
A discussão que é posta pela
narrativa já vem sendo discutida tanto na literatura de ficção quanto em outras
áreas do conhecimento, haja vista o que Vargas Llosa tem dito sobre a arte
contemporânea, especificamente em relação à arte de Damien Hirst, por exemplo,
ou o que nos mostra Milan Kundera no seu mais recente romance A festa da insignificância, de 2014. Hirst,
críticos de arte, jornalistas e filósofos são referidos na narrativa de Lísias,
e nos impulsionam, enquanto leitores, a refletir sobre os limites e delimitações
que se dão entre a ética e a estética. Um elemento diferenciador, no entanto,
em A vista particular é que a
inspiração do artista Arara tem nome e endereço, e é calcada na violência e na
miséria que corroem o Brasil, com seus linchamentos, violência policial e
tráfico.
Sem sombra de dúvidas, A vista particular, de Ricardo Lísias, é
um dos romances mais impactantes, publicados no Brasil de 2016, um ano
excessivamente brutal para a sociedade brasileira. Sua leitura, no entanto,
requer que o leitor não tenha optado por se desconectar das notícias que dominaram
o noticiário nacional nos últimos cinco anos, pelo menos.
Mesmo se o tiver feito, ainda assim se
reconhecerá na narrativa, uma vez que tudo que está ali não é efêmero nem nos é
alheio. Ao contrário, nos é íntimo e, lamentavelmente, cada vez mais recorrente.
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