segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

UM RIO, UMA GUERRA: NARRATIVA DE LUIZ TAQUES


No século XX, um dos pensadores que mais fez por aproximar a História da Literatura, observando seus desvelos e idiossincrasias, foi Gyorgy Lukács (1885-1971). Sobre essa questão, o filósofo húngaro publicou no ano de 1947 a obra O Romance Histórico. Tomando como eixo de análise a obra Ivanhoé (1819), de Walter Scott (1771-1832), Lukács não almeja esgotar as abordagens concernentes à História ou à Literatura, mas apontar a relação entre a realidade e a ficção; observando como a forma, o conteúdo, personagens e temáticas se inter-relacionam, e com que tipo de questionamentos dialogam, levando-se em consideração o meio social no qual estão inseridos e os conflitos que possam se dar no tempo em que ocorrem.
Em seu mais recente romance, Um rio, uma guerra (2016), publicado pela editora Kan, Luiz Taques opta por conduzir a narrativa pelos caminhos do romance histórico. Sobre isso, as palavras de Lukács acerca da relevância do romance histórico nos parecem oportunas para a compreensão da narrativa de Taques. Afirma o autor:

No romance histórico (...) trata-se de figurar de modo vivo as motivações sociais e humanas a partir das quais os homens pensaram, sentiram e agiram de maneira precisa, retratando como isso ocorreu na realidade histórica. E é uma lei da figuração ficcional (...) que, para evidenciar as motivações sociais e humanas da ação, os acontecimentos mais corriqueiros e superficiais, as mais miúdas relações (...) são mais apropriadas que os grandes dramas monumentais da história mundial. (LUKÁCS, 2011, p.60)


Para alguns, no entanto, nada há na literatura que possa contribuir para os estudos historiográficos. Para outros, porém, os dois campos são tão próximos quanto complementares. Se por um lado, a História tem recorrido à Literatura como fonte de pesquisa, a recíproca é mais do que verdadeira. Assim, sobre a vã discussão acerca da disputa inócua produzida por alguns representantes das duas áreas de conhecimento, convém ressaltarmos o que afirma Massaud Moisés (2000) acerca de Heródoto e a relação entre fato e ficção:

Heródoto, considerado o pai da História, misturava pormenores curiosos, propiciados por suas andanças, aos relatos míticos, e amparava-se tanto nas fontes escritas como na transmissão oral, não raro assumindo perante os acontecimentos, graças à liberdade inventiva (que mal permite saber onde para a verdade e onde principia a mentira), a perspectiva de um autêntico ficcionista. (MOISÉS, 2000, p. 166)

Foto de Regina Utsumi
Dessa forma, é possível compreender que a proposta do autor de Teoria do Romance (2009) é centralizar a discussão na relação existente entre o fato e a ficção ou, em outras palavras, investigar o mais detalhadamente possível as relações existentes entre a História e a Literatura. Sabedor de tais relações, Luiz Taques as une na sua narrativa, propiciando ao leitor o melhor desses dois mundos por meio de uma história muito bem contada. E, embora, Um rio, uma guerra não possa ser considerado um romance histórico, inúmeras são as referências históricas que podem ser observadas na constituição da narrativa ficcional de Luiz Taques. Todas elas, de uma forma ou outra, relacionadas à Guerra do Paraguai.
O romance em questão está organizado em treze capítulos, em um total de cento e oito páginas. Os personagens principais não são mencionados por nomes. São apenas a “mãe”, o “filho” e o rio. Há ainda, entre outros, a senhora, a fofoqueira, o capelão, o goleiro, a professora, o ex-marido, o sobrinho do ex-marido e o velhinho. Taques situa sua narrativa na fronteira oeste do Brasil, em Corumbá (MS), cidade invadida e ocupada por tropas paraguaias durante dois anos, de 1865 até 1867 (alguns historiadores afirmam que teriam sido três anos, de 1864 até 1867). O pano de fundo da narrativa é exatamente a Guerra do Paraguai, a qual teve início com a apreensão, pelo Paraguai, do barco a vapor brasileiro “Marquês de Olinda”, no dia 11/11/1864; tendo se tornado um dos conflitos mais sangrentos da história da América do Sul, responsável pelo extermínio de mais da metade da população paraguaia. Só crianças, foram assassinadas por volta de quatro mil.
             Em Um rio, uma guerra; Taques muda os nomes dos acontecimentos, das personagens históricas; topônimos e antropônimos, salpicando com cores de ficção alguns dos fatos mais tristes da história do Brasil. Assim sendo, Paraguai vira “Pararaca”. A Guerra da Tríplice Aliança passa a ser chamada de “Trífida Coalizão da Dubiedade”, A retirada de Laguna se torna “O abandono da Lagoa”, o Marquês de Olinda recebe a denominação de “Marquês do Centro-Oeste”, Solano Lopes é o “tirano de Pararaca”e o Cel. Carlos de Morais Camisão passa a ser o comandante “Pijamão”; enquanto a cearense Jovita Feitosa surge como “Rosita”, Caxias como o general maçom e Iur Asobrab é o anagrama para Rui Barbosa.
              A narrativa de Luiz Taques é um grito de denúncia dos efeitos que a estupidez das guerras, dos massacres e genocídios causam no ser humano, independentemente do período histórico no qual estejam albergados. No caso da Guerra do Paraguai não foi diferente e, até hoje, as nações envolvidas, principalmente o Paraguai, pagam um preço muito alto pelo desejo de imposição da força em detrimento de outras formas de solução de conflitos. E assim sendo, se erigem governos e governos sobre montanhas de cadáveres, ontem e hoje. Dessa maneira, pelas linhas narrativas de Um rio, uma guerra; percebe-se também a denúncia da condição feminina, esvaziada do empoderamento e do direito básico à liberdade, bem como a violação dos direitos das crianças. A narrativa ainda discorre sobre o racismo, os males das ditaduras e o posicionamento da imprensa, com seus jornais chapas-branca e seus periódicos puxa-sacos. A justiça, e seu Lawfare, como modus operandi, também recebe atenção na narrativa.
               Como dito, muitas são as referências político-culturais nesse mais recente trabalho de Luiz Taques. Como não perceber Dadá Maravilha, no goleiro, em seu desejo de, tal qual um beija-flor, parar no ar e “ir lá, no cantinho, e, com as pontas dos dedos, mandar a bola para corner...”? Como não identificar as leituras do autor quando, ao estilo de Dalton Trevisan, diz: “nas noites de breu ou de luar, o padre se revelava, ah, meu Deus, um violentador”. E ainda a presença intertextual no romance em análise, da obra A retirada de Laguna (1871), do Visconde de Taunay.
                    Em Um rio, uma guerra (2016), Luiz Taques retoma o rio como personagem principal, assim como fizera em Pedro, de 2013. Na atual narrativa, o rio, por sua dinâmica natural, é posto em oposição à situação de paralisia da cidade. Embora aquele rio (o rio Paraguai) já não seja mais o mesmo (mãe e filho também já não o são), as histórias que ele conta e as lembranças que mantém se cristalizaram na memória dos habitantes mais velhos da cidade; memórias tais que quase não são alcançadas pelos mais jovens. Mãe e filho percebem o mesmo rio por diferentes olhos. E se em Érico Veríssimo a mulher é associada a terra (Ana significa “terra” em hebraico. Lembremos da personagem Ana Terra), em Luiz Taques a mulher é associada à imagem do rio em toda sua dádiva e esplendor.
                    Há, certamente, muito mais a ser dito sobre Um rio, uma guerra. Contudo, a brevidade da presente resenha nos impede de irmos além. Deixamos, no entanto, a sugestão da leitura desse maravilhoso trabalho do escritor de Corumbá (MS) que, assim como os rios que encontramos, parafraseando João Cabral de Melo Neto, vão seguindo com a gente, sempre.

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