segunda-feira, 6 de março de 2023

O homem do casaco vermelho, de Julian Barnes


John Singer Sargent (1856 – 1925) foi um pintor italiano, tendo sido considerado como um dos melhores da sua época. No ano de 1881concluiu o retrato do Doutor Samuel Pozzi, com o nome de Doutor Pozzi em Casa. Desde o ano de 1991, o quadro pertence ao acervo do Museu Hammer, em Los
Angeles. E é a partir da pintura Doutor Pozzi em Casa, que o escritor Julian Barnes elabora, em seu O homem do casaco vermelho (2021), um maravilhoso painel da cultura francesa e inglesa do começo do século XX. O livro de Barnes foi traduzido para o português por Léa Viveiros de Castro, e publicado pela editora Rocco.

Ao apresentar ao leitor o modelo do quadro de Sargent, Barnes assim o descreve:

O modelo – o plebeu como nome italiano – tem trinta e cinco anos, é bonito, usa barba, e está olhando com um ar confiante por cima do nosso ombro direito. Ele é viril, mas esbelto, e aos poucos, depois do primeiro impacto causado pela pintura, quando podemos pensar que “o importante é mesmo o casaco”, percebemos que não. As mãos são mais importantes. A mão esquerda está no quadril; a direita, no peito. Os dedos são a parte mais expressiva do retrato. Cada um está articulado de forma diferente: totalmente estendido, dobrado até a metade, totalmente dobrado. Se nos pedissem para adivinhar a profissão do homem, poderíamos achar que era um pianista virtuoso.

Mão direita no peito, mão esquerda no quadril. Ou talvez algo mais sugestivo do que isto: mão direita no coração, mão esquerda na virilha. Isso faria parte da intenção do artista? (...). A mão direita brinca com o que parece ser uma presilha. A mão esquerda está enganchada em um dos cordões duplos da cintura, que repetem os cordões que prendem as cortinas ao fundo. O olho os acompanha até um nó complicado, do qual pende um par de borlas peludas, uma por cima da outra. Elas pendem logo abaixo da virilha, como um pênis de boi escarlate. O pintor teve essa intenção? Quem sabe? Ele não deixou nenhum relato da pintura. Mas ele era um pintor malicioso além de magnífico; era também um pintor de ostentação, não tinha medo de polêmica, e talvez, na realidade, fosse atraído por ela.

A pose é nobre, heróica, mas as mãos tornam-na mais sutil e mais complicada. Não as mãos de um pianista, afinal de contas, mas as de um médico, um cirurgião, um ginecologista (...) (BARNES, 2021, P. 7-8)

O livro de Barnes tem 272 páginas e é fartamente ilustrado. Pela pena do autor de O sentido de um fim, obra vencedora do Prêmio Man Booker Prize, de 2011, passam inúmeros nomes de todos os campos das artes e das ciências. Muitas das ações, atitudes e trabalhos dessas pessoas serviram para quebrar paradigmas criativos e comportamentais de uma época e apontar caminhos para as gerações que lhes sucederam.

Assim sendo, a figura de Pozzi é o ponto a partir do qual Barnes tece toda uma teia de relações pessoais e profissionais, que envolve obras, autores e ideias as quais são de fácil reconhecimento para uma grande parcela de leitores. Entre tantos, tem-se: Sarah Bernhardt, que teria sido uma das inúmeras amantes de Pozzi, Adrien e Robert Proust (pai e irmão de Marcel Proust e colegas médicos de Pozzi), enquanto o autor de Em busca do tempo perdido foi seu amigo, assim como também o foi Oscar Wilde, Robert de Montesquiou, Jean Lorrain e Joris-Karl Huysmann.


Na primeira orelha do livro lê-se:

Por intermédio de John Singer Sargent, autor da pintura que dá título ao livro, e do próprio Dr. Pozzi (grande colecionador), Juliana Barnes aborda um dos seus temas preferidos: a arte, cuja análise ele transforma em radiografia de toda a sociedade. E ao analisar as vidas e as obras de outros escritores célebres, como Guy de Maupassant, Barbey d’Aurevilly, Gustave Flaubert e os irmãos Goncourt, ele compõe um esplêndido e irretocável painel da vida cultural da Belle Époque, no qual não faltam os toques dramáticos do modismo dos duelos e dos assassinatos de médicos por pacientes insatisfeitos.

A leitura de O homem do casaco vermelho, de Barnes, exige tempo, paciência e atenção do leitor, tendo em vista o entrelaçamento da imensa quantidade de informações que constitui a narrativa. Isso, no entanto, não diminui em absolutamente nada a grandeza do texto. Quanto mais dele se lê, mais se deseja ler. Barnes é, sem dúvidas, um dos grandes autores do nosso tempo.

 

Para ler Julian Barnes:

1.      BARNES, Julian. O sentido de um fim. Trad. Léa Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: Rocco, 2012.

2.      ______________. Altos vôos e quedas livres. Trad. Léa Viveiros de Castro Rio de Janeiro: Rocco, 2014.

3.      _____________. O ruído do tempo. Trad. Léa Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: Rocco, 2017.

4.      _____________. Mantendo um olho aberto: ensaios sobre arte. Trad. Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Anfiteatro, 2017.


quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

Antonio Candido sobre Adoniran Barbosa

 

" Adoniran Barbosa é um grande compositor e poeta popular, expressivo como poucos; mas não é Adoniran nem Barbosa, e sim João Rubinato, que adotou o nome de um amigo do Correio e o sobrenome de um compositor admirado. A idéia foi excelente, porque um artista inventa antes de mais nada a sua própria personalidade; e porque, ao fazer isto, ele exprimiu a realidade tão paulista do italiano recoberto pela terra e do brasileiro das raízes europeias. Adoniran é um paulista de cerne que exprime a sua terra com a força da imaginação alimentada pelas heranças necessárias de fora.

Já tenho lido que ele usa uma língua misturada de italiano e português. Não concordo. Da mistura, que é o sal da nossa terra, Adoniran colheu a flor e produziu uma obra radicalmente brasileira, em que as melhores cadências do samba e da canção, alimentadas inclusive pelo terreno fértil das Escolas, se alia com naturalidade às deformações normais de português brasileiro, onde Ernesto vira Arnesto, em cuja casa nós fumo e não encontremo ninguém, exatamente como por todo esse país. Em São Paulo, hoje, o italiano está na filigrana.


A fidelidade à música e à fala do povo permitiram a Adoniran exprimir a sua Cidade de modo completo e perfeito. São Paulo muda muito, e ninguém é capaz de dizer aonde irá. Mas a cidade que nossa geração conheceu (Adoniran é de 1910) foi a que se sobrepôs à velha cidadezinha caipira, entre 1900 e 1950; e que desde então vem cedendo lugar a uma outra, transformada em vasta aglomeração de gente vinda de toda parte. A nossa cidade, que substituiu a São Paulo estudantil e provinciana, foi a dos mestres-de-obra italianos e portugueses, dos arquitetos de inspiração neo-clássica, floral e neo-colonial, em camadas sucessivas. São Paulo dos palacetes franco-libaneses do Ipiranga, das vilas uniformes do Brás, das casas meio francesas de Higienópolis, da salada da Avenida Paulista. São Paulo da 25 de março dos sírios, da Caetano Pinto dos espanhóis, das Rapaziadas do Brás, na qual se apurou um novo modo cantante de falar português, como língua geral na convergência dos dialetos peninsulares e do baixo-contínuo vernáculo. Esta cidade que está acabando, que já acabou com a garoa, os bondes, o trem da Cantareira, o Triângulo, as Cantinas do Bixiga, Adoniran não a deixará acabar, porque graças a ele ela ficará misturada vivamente com a nova mas, como o quarto do poeta, também "intacta, boiando no ar."

A sua poesia e a sua música são ao mesmo tempo brasileiras em geral e paulistanas em particular. Sobretudo quando entram (quase sempre discretamente) as indicações de lugar, para nos porem no Alto da Mooca, na Casa Verde, na Avenida São João, na 23 de maio, no Brás genérico, no recente metrô, no antes remoto Jaçanã. Quando não há esta indicação, a lembrança de outras composições, a atmosfera lírica cheia de espaço que é a de Adoniran, nos fazem sentir por onde se perdeu Inês ou onde o desastrado Papai Noel da chaminé estreita foi comprar Bala Mistura: nalgum lugar de São Paulo. Sem falar que o único poema em italiano deste disco nos põe no seu âmago, sem necessidade de localização.

Com os seus firmes 65 anos de magro, Adoniran é o homem da São Paulo entre as duas guerras, se prolongando na que surgiu como jiboia fuliginosa dos vales e morros para devorá-la. Lírico e sarcástico, malicioso e logo emocionado, com o encanto insinuante da sua anti-voz rouca, o chapeuzinho de aba quebrada sobre a permanência do laço de borboleta dos outros tempos, ele é a voz da Cidade. Talvez a borboleta seja mágica; talvez seja a mariposa que senta no prato das lâmpadas e se transforma na carne noturna das mulheres perdidas. Talvez João Rubinato não exista, porque quem existe é o mágico Adoniran Barbosa, vindo dos carreadores de café para inventar no plano da arte a permanência da sua cidade e depois fugir, com ela e conosco, para a terra da poesia, ao apito fantasmal do trenzinho perdido da Cantareira." (Antonio Cândido, 1975).

 

Texto de Antonio Candido sobre Adoniran Barbosa. O texto está na contracapa do LP Adoniran Barbosa, gravado pela ODEON no ano de 1975, com direção musical de José Briamonte.

 


terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

Augusto Pontes: o amigo genial

 

Belchior era amigo de Ednardo que é amigo de Fausto que é amigo de Fagner e de Rodger Rogério, Téti e Pedro que é amigo de Ricardo que é amigo de Ibiapina que é amigo de Mariano e Alano que são amigos de Paulo que é amigo de Alexandre que é amigo de Isabel que é amiga de Bruno que é amigo de Edvardo que é amigo de Campelo e Chica, Dedé, Leny, Mércia, Sérgio e Jorge que é amigo de Mônica que é amiga de Ataliba que é amigo de Graco que é amigo de Barbosa que é amigo de Caio que é amigo de Beatriz que é amiga de Frederico e de Cláudio que era amigo de Gilmar que era amigo de Celso que é amigo de Eugenio e Daniel e Luciano e Mário e Romeu que é amigo de Galba que é amigo de Wagner que é amigo de Cid e Lúcio que são amigos de Patrícia que é amiga de Solon que é amigo de Ana que é amiga de Fernando e Roberto.

Pode ser que nem todo mundo que é citado como “era/é amigo ou amiga de” nem o seja, mas o que todas essas pessoas têm  em comum é que tiveram, sim, um amigo genial chamado Francisco Augusto Pontes, conhecido também como Augusto Pontes ou apenas Chico Pontes. Augusto pontes (1935 – 2009) é tido por aquelas pessoas que partilharam do seu convívio, como uma figura inteligente, culta e marcante tanto no âmbito pessoal quanto profissional. E é exatamente sobre ele que trata o livro Augusto Pontes: o amigo genial (2022), organizado por Ricardo F. Bezerra e publicado pela Expressão Gráfica e Editora, de Fortaleza.

O livro possui 285 páginas. As orelhas são assinadas por Rachel Gadelha, Diretora-presidenta do Instituto Dragão do Mar e por Fabiano dos Santos Piúba, Secretário de Cultura do Ceará, que dizem:

(...) Augusto é incomparável. Espírito audacioso sustentado sobre uma sólida formação intelectual foi personagem determinante nos movimentos artísticos do Ceará desde a década de 1960, sobretudo na música popular que projetou tantos parceiros e amigos seus no cenário nacional (...). Suas concepções sobre cultura, comunicação, democracia e liberdade ainda hoje são referências para muitos: através de amigos, artistas, professores, comunicadores, formadores de opinião, e toda uma geração de pessoas que, posteriormente, vieram inclusive a ocupar cargos na gestão pública e tiveram nele uma espécie de “guru”. O próprio Augusto foi secretário de Cultura do estado do Ceará (1991 – 1993) e deixou um legado importante sobre um pensamento não só de cultura, mas de política cultural, ampliando a noção de cultura para além das artes e inserindo a agenda da formação como uma pauta estratégica. O que vieram de projetos, experiências e instituições de formação cultural em nosso estado são legados de seu pensamento pulsante (...).  Não é por acaso que o lema que o guiava à frente da SECULT era: “Vá ao teu povo, ame-o, aprende com ele, sirva-o, comece com o que ele sabe, construa sobre o que ele tem” (...).

 

A obra é constituída de depoimentos das amigas e amigos de Pontes e, por tal razão, muitas vezes as informações se repetem, por se tratarem de memórias relativas aos acontecimentos que foram vivenciados coletivamente na rua, na Praça do Ferreira ou no Bar do Anísio, por exemplo, quando muitos desses amigos e amigas compartilhavam as conversas e as noitadas numa Fortaleza que já não existe mais. Há, e isso o leitor perceberá, informações contraditórias, quando se compara o mesmo fato mencionado por amigos diferentes. Isso, no entanto, não diminui a qualidade e a relevância do trabalho, uma vez que tais detalhes podem ser confirmados ou refutados a partir de outras fontes disponíveis.

O livro está organizado em oito grandes partes, a saber, “Pontes por nós” (p.7), “Pontes para o teatro” (p.228), “Carta íntima do tempo” (p. 244), “Pontes para as canções” (p. 247), “Humor: uma marca pessoal” (p. 264), “Um pós-fácil para Pontes” (p. 274), “Adjetivário e Agradecemos” (p. 281) e “Índice de autores” (p. 285). Augusto Pontes não deixou trabalhos escritos em formato de livro, por exemplo. Logo, não há uma sistematização dos seus pensamentos e ideias a não ser a partir do que dizem seus amigos. O livro deixa claro, em mais de uma ocasião, que há sob os cuidados da família um grande arquivo com suas anotações, desenhos, projetos etc. Dos seus escritos, o livro traz um texto (p. 244 – 246) intitulado “Carta íntima do tempo” e que havia sido confiado por ele a Ieda Estergilda, nos anos 1970. O texto traz algumas reflexões, que podem apontar caminhos aqueles que desejem se aprofundar na vida e na obra do autor em questão.

A organização, catalogação e consequente publicação do arquivo de Augusto Pontes seria de enorme valia para todas as pessoas que tem interesse em seu trabalho, bem como dos tantos pesquisadores que se debruçam sobre  movimentos como o Massafeira e o Pessoal do Ceará, dos quais Pontes foi ator. Isso, no entanto, demanda tempo, interesse público e dinheiro; coisas sempre difíceis quando o assunto é cultura. Mas seguimos esperando, tristes, como dizia Pontes, como um peixe afogado.