terça-feira, 18 de março de 2014

BLISS: A IRONIA EM KATHERINE MANSFIELD

Katherine Mansfield
Ao longo dos tempos, a ironia tem se desenvolvido muito lentamente. Na Inglaterra, por exemplo, a ironia sempre foi compreendida como sinônimo de dissimulação, atenuação da verdade ou paródia. Somente por volta da primeira metade do século XVIII, o significado de “ironia” foi ampliado e compreendido como forma de comportamento. Contudo, apenas no começo do século XIX, na Alemanha, é que a palavra “ironia” assumirá novos significados. A ironia é um fenômeno bastante antigo, observada primeiramente na República, de Platão, como eironeia. Contudo, a ironia não é original da cultura grega, uma vez que já aparecera em textos como o Êxodo e Beowulf, o longo poema épico britânico do século VIII.

A assunção de novos significados está diretamente relacionada às especulações filosóficas e estéticas que, por muitos e muitos anos, alçaram a Alemanha à liderança intelectual da Europa. Entre todos aqueles responsáveis pelos novos significados dados à ironia, estão Frederich Schlegel, seu irmão A.W. Schlegel e Karl Solger. Além das pesquisas que eles fizeram enfatizando a presença da ironia no Rei Lear, de Shakespeare, por exemplo, eles também recorreram ao termo “ironia” ao falar da objetividade, da indiferença e da liberdade do artista em relação ao seu trabalho. Ao longo da história, muitos outros escreveram sobre o conceito de ironia. Connop Thirlwall e Kierkgaard, por exemplo, o fizeram ainda sob a influência dos alemães.

Não apenas os estudiosos da ironia, mas também alguns romancistas e filósofos escreveram sobre a ironia. Para Heine, Baudelaire, Nietzsche e Thomas Mann, entre outros, a ironia é, principalmente, ironia romântica. Uma vez que o tema “ironia” é dos mais extensos, não é nosso objetivo esgotá-lo ( o que seria impossível!), mas apenas observá-lo,considerando apenas os dois principais tipos de ironia: o verbal (ou comportamental) e o situacional, localizando-os na narrativa de Katherine Mansfield.

Em Irony (1970), D.C. Muecke classifica a ironia em dois grupos básicos: o primeiro, é a ironia de um sujeito que, intencionalmente, mostra-se irônico. Trata-se da ironia verbal ou comportamental. O outro é a ironia resultante de uma situação irônica ou um evento no qual não há um sujeito irônico, mas uma “vítima” e um observador. Trata-se da ironia situacional, também chamada de ironia inconsciente ou intencional.

A prosa de Katherine Mansfield é carregada de fortes cores de ironia. É, na verdade, a linha que costura contos como: “The Doll's House”, “Psychology” e “The Garden Party”. Mas, acreditamos que seja em “Bliss” onde o texto da autora alcança o ápice da ironia.

A palavra “bliss” significa “felicidade”, mas semanticamente o termo encerra um sentido muito mais amplo do que apenas felicidade. O significado implícito no termo “bliss” aproxima-se de algo como “glorioso” e “divino”.

O conto “Bliss” foi escrito em 1920 e é narrado pela voz de um observador (se há um observador, há uma “vítima”. O personagem principal é uma mulher de nome Berta Young. Bertha possui tudo o que deseja: um bom marido, um bebê adorável, uma grande e confortável casa com um lindo jardim, boa comida, dinheiro, livros, música e amigos, muitos amigos. Bertha tem uma vida perfeita. Tão perfeita que costuma declarar aos sete ventos o quanto é feliz: “Eu sou muito feliz”, diz. Ela é tão feliz que, mesmo aos trinta anos de idade, age como se fosse uma criança! Ao mesmo tempo em que possui tudo aquilo que deseja, Bertha demonstra não saber lidar com o que tem. Que irônico! Observa-se assim, que  a ironia está presente desde o primeiro parágrafo, quando a narradora apresenta Bertha ao leitor. O sobrenome dela, lembrem-se, é Young (jovem), sinônimo de juventude, de vida.

Bertha Young é vítima em um círculo de ironia situacional. A vítima da ironia, conforme Muecke, não precisa ser, mas, na maioria das vezes é arrogantemente, deliberadamente cega. Se não revelado por palavras ou ações, a vítima da ironia não suspeita, nem mesmo remotamente, que as coisas podem não ser aquilo que ela, ingenuamente, acredita que sejam. Assim sendo, Bertha Young acredita que sua vida seja perfeita, por ter tudo aquilo que tem. Acredita, assim, que não são os sentimentos, as atitudes ou as emoções que a mantém feliz, mas seus bens materiais. Dessa forma, quanto maior é a cegueira da “vítima”, maior é a ironia.

Bertha parece não ter consciência da realidade que a cerca, uma vez que vive em um mundo de aparências. A narradora compara Bertha a uma pereira cheia florida, símbolo de perfeição. Embora a narrativa  não afirme, mas o leitor pode inferir que uma árvore cheia de flores só é possível conforme permite a primavera. Assim, para a jovem Bertha, a vida é sempre primaveril, mesmo quando nem de longe a primavera parece se avizinhar.

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