quinta-feira, 20 de março de 2014

ZYGMUNT BAUMAN E AS 44 CARTAS DO MUNDO LÍQUIDO MODERNO

Começo o presente  trabalho, fazendo o que não se deve fazer em um texto de análise crítica: um desabafo. O desabafo consiste, e isso, espero, seja coisa unicamente minha, no medo que sinto de que o autor do livro sobre o qual falarei aqui simplesmente não exista; nunca tenha existido. Meu medo se fundamenta na caudalosa produção desse senhor de mais de oitenta anos, que produz assustadoramente como se um homem não fosse, mas uma equipe especializada em levar adiante os mais contundentes debates abrigados sob tudo aquilo que comporta, sociologicamente falando, o termo "líquido". 

Zygmunt Bauman
O século XX proporcionou ao mundo uma gama de autores de imenso valor intelectual. Isso, no entanto, é bom deixar claro, não diminui os séculos anteriores, nem aqueles que virão do século XXI em diante, umavez que cada época produz seus mestres, artistas e pensadores. Por ser um homem do século XX é quetomo tal período como recorte, ressaltando a presença e a contribuição que nos é dada por homens como Umberto Eco, Frederic Jameson, Stuart Hall, Alberto Manguel e Zygmunt Bauman; por exemplo.

 Deles, o que mais atrai minha atenção é Zygmunt Bauman. Publicado no Brasil pela editora Zahar, Bauman nasceu na Polônia no ano de 1925. Perseguido pelo estado autoritário polonês, deixou seu cargo de professor na universidade de Varsóvia, trabalhando em paises como Austrália, Canadá e Estados Unidos. Desde o ano de 1971 Bauman mora na Inglaterra, onde trabalhou como professor na universidade de Leeds; sendo hoje, professor emérito das universidades de Varsóvia e Leeds. Zygmunt Bauman é reconhecido tanto pela quantidade de livros que produz, quanto pela qualidade da sua obra como um todo;obra essa voltada para a análise das mudanças socioculturais e políticas  mais relevantes em nosso tempo. E assim sendo, em vez de lançar mão de conceitos já estabelecidos (e que muitas vezes se confundem) como pós-modernidade, contemporaneidade ou modernidade tardia; por exemplo, Bauman cunha o termo modernidade líquida, passando a analisar a sociedade contemporânea a partir dos seus medos, educação, economia, consumo, morte, amor, vigilância e arte; para ficarmos apenas em alguns.

Numa tentativa de demonstrar o quão rica é a produção do intelectual polonês, citamos algumas (apenas algumas) de suas obras referenciais. Neste caso, todas as obras estão em português e, como disse, todas publicadas pela editora Zahar: O mal-estar da pós-modernidade (1998), Globalização - as consequências humanas (1999), Modernidade Líquida (2001), Amor Líquido - sobre a fragilidade dos laços humanos (2004), Identidade (2005), Vidas desperdiçadas (2005), Europa (2006), Vida Líquida (2007), A Arte da Vida (2009), Capitalismo Parasitário  (2010) Bauman sobre Bauman (2011), 44 Cartas do Mundo Líquido (2011), Ensaios sobre o conceito de cultura (2012), Isto não é um diário (2012), Sobre educação e juventude (2013), A cultura no mundo líquido moderno (2013) e Vigilância Líquida (2014). E enquanto você, caro leitor, lê esse texto, muita coisa produzida por Zygmunt Bauman já abunda nas livrarias do país.

Não é tarefa das mais fáceis escolher apenas uma obra de Bauman para falar a respeito. Assim sendo, tendo em vista o advento das tecnologias e, mais especificamente, os usos das redes sociais e todas as demais formas de comunicação do mundo moderno; parece-nos bastante oportuno lançarmos olhos sobre a obra intitulada 44 Cartas do Mundo Líquido Moderno, 2011. Nas 44 cartas contidas na referida obra, Zygmunt Bauman escreve sobre assuntos que discorrem sobre os usos do Facebook, do Twitter, do sexo virtual, da privacidade (ou da falta dela); sem descuidar dos assuntos que constituem as bases das suas principais discussões, por estarem no cerne da compreensão da sociedade. Dessa forma, o sociólogo discorre sobre as relações entre pais e filhos, sobre educação, sobre o consumo e a cultura; por exemplo. 

Já no primeiro texto, denominado de "Sobre escrever cartas... de um mundo líquido moderno" (p. 7-12), Bauman opta por fazer alguns esclarecimento sobre a referida obra. Afirma o autor:

Cartas de um mundo líquido moderno... Foi isso que os editores de La Repubblica delle Donne  (Conforme N.T, trata-se de uma revista semanal dirigida ao público feminino, dedicada a temas relativos a política, economia e cultura contemporâneas) me pediram para escrever e enviar aos seus leitores a cada quinze dias. É o que venho fazendo há quase dois anos (Conforme N.T. As cartas foram escritas em 2008 e 2009, e reunidas, editadas e ampliadas para  o livro em questão).
 Cartas que vêm do mundo "líquido moderno", quer dizer, o mundo que eu, o autor das missivas, e vocês, possíveis, prováveis, esperados leitores, compartilhamos. O mundo que chamo de "líquido" porque, como todos os líquidos, ele jamais se imobiliza nem conserva sua por muito tempo. Tudo ou quase tudo em nosso mundo está sempre em mudança: as modas que seguimos e os objetos que despertam nossa atenção (uma atenção, aliás, em constante mudança de foco, que hoje se afasta das coisas e dos acontecimentos que nos atraiam ontem, que amanhã se distanciará das coisas e acontecimentos que nos instigam hoje); as coisas que sonhamos e que tememos, aquelas que desejamos e odiamos, as que nos enchem de esperanças e as que nos enchem de aflição. (BAUMAN, 2011:7)


E a partir da distinção dos dois tipos de narrativas (histórias de marinheiro e histórias de camponês), defendidos por Walter Benjamin (1892-1940), que Zygmunt Bauman desenvolverá o conteúdos das suas 44 cartas. Destarte, o autor opta por escrever histórias de marinheiro como se essas fossem contadas por camponeses, enfatizando o há de mais extraordinário nessas histórias, mas que nem sempre se consegue perceber. Para ele: "se quisermos tornar verdadeiramente familiares coisas que parece familiares, é preciso antes de mais nada fazê-las estranhas".

Adam Mickiewicz
Apontados conteúdo e forma, ainda resta ao leitor se perguntar a razão do título do livro. Por qual razão, perguntaria, são exatamente 44 cartas? A escolha do autor em nomear assim esse seu trabalho tem muito a ver com Quarenta e Quatro, figura  misteriosa referida em um poema de Adam Mickiewicz (1798-1855). As explicações para a significação do referido número, no entanto, são bastante variadas, mas não chegam a dar conta da amplidão de possibilidades semânticas.Contudo, é possível afirmar que para o poeta romântico polonês, "o número 44 representa o respeito e a esperança pela chegada da liberdade". Assim sendo, observamos que, como reforça o próprio Bauman, é "o espectro da liberdade que está presente nas 44 cartas, cujos temas, todavia, são variados - mesmo que de maneira invisível, como é da natureza dos espectros dignos deste nome".

Mesmo tendo sido escolhidas arbitrariamente para a publicação em análise, as 44 cartas de Zygmunt Bauman se mostram como um grande escopo para a reflexão dos tempos em que vivemos. Longe de serem receitas prontas para o que quer que seja, as missivas do professor polonês servem para dizer-nos dos caminhos que nós, enquanto humanidade, temos trilhado. Se o nosso impulso para escrever cartas está se esvaindo? Talvez. Mas que não se esvaia jamais o impulso naturalmente humano de ansiarmos pela conquista e manutenção da liberdade em tempos tão liquefeitos. 

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