quinta-feira, 27 de novembro de 2025

Não devo pensar em coisas ruins

 

O título do presente artigo é tomado de empréstimo do livro I must not think bad thoughts: Essays on American Empire, digital culture, posthuman porn, and sexual symbolism of Madonna’s big toe (2010), de Mark Dery que, por sua vez, tomou emprestado do disco More fun in the new world (1983), da banda de punk rock X. o referido livro foi traduzido para o português por Marcelo Duarte como Não devo pensar em coisas ruins: ensaios sobre o Império Americano, cultura digital, pornografia pós-humana e o simbolismo sexual do dedão da Madonna, também de 2010, publicado pela Editora Sulina. Os ensaios do referido crítico cultural, de teor irônico e bem humorados, desnudam a sociedade norte-americana, expondo suas chagas e contradições de maneira certeira e aprofundada, como poucos críticos da sua geração o fazem.

O livro de Dery me caiu às mãos (organizado por ele, já havia lido Flame wars: the discourse of cyberculture, de 1994, ainda sem tradução para o português brasileiro) em um momento em que reservei para mim dois dias sem pensar muito em coisas ruins, como a chacina do Rio de Janeiro, o PL daquele nobre parlamentar que tenta impedir a Policia Federal de investigar o crime organizado, os 284 Crimes Violentos Letais Intencionais – CVLI e as 41 mortes por intervenção policial ocorridas somente em outubro, no Ceará. Também me recusei a dedicar um fio de pensamento que fosse sobre se o cramunhão vai ser mantido em prisão domiciliar, preso em uma garrafa, mandado pra Papuda, Papudinha ou para a ilha de Lost. Muito “mais importante” foi ler e refletir sobre coisas como o simbolismo sexual do dedão da Madonna. Sem tempo pra pensar em coisa ruim!

Assim, larguei quase tudo (na verdade, deixei em stand by) e fui ler Mark Dery. Sinistro! Reli também Alucinação: minha vó costurou minha mãe uma mulher de costura (2023), livro de Samuel Maciel Martins, publicado pela Editora Aluá. Na sequência, reli Boceta encantada e outras historinhas (2023), livro de contos de Sarah Forte, publicado pela Editora Patuá. Lindezas!  Os poemas de Martins e os contos de Forte são belezas. E como bem nos dizem Jorge Mautner e Nelson Jacobina: “belezas são coisas acesas por dentro”. E para que as belezas não fossem apagadas, resolvi inundar o ambiente com música.  Assim, ouvi reiteradas vezes, na voz de Arrigo Barnabé, “Mal menor”, “Noite torta” e “De mais ninguém”. Na voz de Nina Simone, “To love somebody”, “Stars” e “Everything must change”. Nada de pensar em coisas (e pessoas) ruins ou “nos fatos que odiamos”, como diz a canção da banda X.

Ainda da série “Belezas são coisas acesas por dentro”, ouvi sem cessar a canção “Os passa vida”, de Osmar Júnior e Rambolde Campos, nas vozes de Nilson Chaves e Lucinha Bastos. Essa canção é de uma beleza monumental, pois contém na simplicidade da sua letra toda a complexidade de um belo poema: “Quando o sol chegou/Clareando o dia/Foi pra me socorrer da noite que eu vinha...”. De forma magistral, a composição dialoga com temas poéticos universais quando trata, por exemplo, do amor, da solidão e da saudade: “O que aperta o peito/É o tempo, é o cheiro/O amor é assim/Eu quis você pra mim/Eu quis você pra mim” ou “Eu te procurei/Te achei em minha solidão...” e “... Mandei a saudade de buscar/Pra perto de mim” e ainda: “...Um beijo no tempo segurei/E guardei pra você aqui”. A cor local também se mostra na tessitura da canção quando a cidade, que acredito deva ser Belém, surge nos versos dos poetas e dizem: “É que nessa cidade/As mangueiras falam sempre em ti/Na chuva da tarde, os passa vida/E é sempre assim”.

Como dois dias passam muito rápido, o livro de Mark Dery ainda está ali ouvindo essa nossa prosa e aguardando sua leitura ser concluída. De volta à realidade, vejo o noticiário e percebo que as coisas ruins nas quais me recusei a pensar, mesmo assim continuaram “pensando” em mim.   

segunda-feira, 10 de novembro de 2025

Arrigo visita Itamar ou quando Clara Crocodilo encontrou o Dragão do Mar

 

Por volta das 17h30 as pessoas já começavam a chegar. Entravam e não conseguiam desviar os olhos dos lustres que pendem do teto do majestoso Cineteatro São Luiz, casa de espetáculos cravada na Praça do Ferreira, coração da cidade de Fortaleza. A grandeza do prédio construído pelo Grupo Severiano Riberio é tanta, que nem mesmo a feiura dos tapumes da praça em reforma conseguem ofuscar sua imponente beleza. Na plateia, as pessoas começam a se acomodar, como se fossem abraçadas pela delicadeza daquele espaço. A apresentação está marcada para as 18h. Ainda há muitas cadeiras desocupadas, mas sei que isso não vai ficar assim.


Terceira fileira, bem de frente pro palco, poltrona C1. Em localização privilegiada, aguardo a entrada de Arrigo Barnabé e a Banda Isca de Polícia, que visitarão a obra de Itamar Assumpção naquele início de

noite de domingo, quando tudo o mais parece estar parado lá fora. Na divulgação do evento, lemos que a ideia do show nasceu a partir do desejo de Arrigo Barnabé de revisitar a obra de Itamar Assumpção. As luzes se apagam. No palco, Paulo Lepetit (baixista), Jean Trad (guitarra) e Marco da Costa (bateria) já ocupam seus lugares. Então, o espaço é tomado por uma voz que pergunta sem cessar: “o que tem nessa cabeça, Beleléu?”. Lá no fundo do palco, por traz da bateria, vem surgindo lentamente um senhor grisalho, de 74 anos, elegantemente vestido em um sobretudo escuro, caminhando assim de lado, como se carregasse o peso da dor. Senhoras e senhores, Arrigo Barnabé está no palco!

Nas quase duas horas que se seguiram, Arrigo Barnabé e seus músicos fizeram, sem sombra de dúvidas, um dos melhores shows que já passaram por aquele teatro. E olhe, caro leitor, que Edinardo já incendiou aquilo ali bem recentemente! E assim sendo, o público foi brindado com canções de Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção, mas também de autores como Ataulfo Alves (“Na cadência do samba”), Nelson Cavaquinho (“Luz negra”, “Quando eu me chamar saudade”), Orlando Silva (“Errei... Erramos”) e Arnaldo Antunes (“De mais ninguém”), por exemplo. Dessa forma, Arrigo Barnabé e sua banda desfiaram um rosário de incontornáveis canções da música brasileira, para um público atento e ávido.

E por falar em rosário, Arrigo Barnabé ainda declamou o poema “Relógio do Rosário”, do livro Claro Enigma (1951), de Carlos Drummond de Andrade, o que acabou por compensar, para mim, a ausência da canção “Isso não vai ficar assim”. A escolha do referido poema não se deu por acaso, uma vez que algumas das canções apresentadas (“De mais ninguém”, “Dor elegante”), assim como algumas das falas do artista, versam sobre a condição humana, o tempo e, principalmente, a dor. E é por esse caminho que se estrutura o poema em questão, uma vez que Drummond o tece inteiramente a partir da carga semântica da lexia dor, a qual é muito menos física, mas muito mais existencial: “Oh dor individual, afrodisíaco...”, “Dor primeira e geral esparramada...”, “Dor de tudo e de todos/Dor sem nome...”, “Dor dos bichos...”, “Dor do espaço e do caos e das esferas, do tempo que há de vir, das velhas eras!”.

O bis ficou por conta de “Fico louco”, que diz: “A gente sofre tanto/Vive muito mal/Espero que você não se esqueça”. No final, tudo que se quer talvez seja apenas isso: “...andar nas ruas da cidade agarrado contigo/Vivendo em pleno vapor, felicidade contigo”.  Afinal, como nos diz Paulo Leminski: “um homem com uma dor é muito mais elegante” e, muitas vezes, ela é tudo o que nos sobra.  

 



domingo, 31 de agosto de 2025

O RISO FEITO FACA: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE COISAS ENGRAÇADAS DE NÃO SE RIR, DE RAYMUNDO NETTO

 


Atores e atrizes costumam dizer que é muito mais fácil fazer chorar do que rir. Eles estão certos, pois fazer rir é uma arte que exige de todos aqueles que a exercem uma mestria que beira um dom, uma dádiva. No campo da literatura, o riso costuma exigir muito mais dos autores do que as construções semânticas que podem causar no leitor sensações de dor, nojo, indignação e cortes na carne de fazer espirrar sangue. E é esse tipo de riso que observamos nos contos “tortos” de Raymundo Netto, em seu Coisas engraçadas de não se rir (2024) que, feito faca, “cortam a carne” de leitoras e leitores, tirando-os de suas zonas de conforto e jogando-lhes na cara situações engraçadas de rir, mas também de não se rir.

Coisas engraçadas de não se rir foi publicado no ano de 2024, com revisão de Mayara Freitas, projeto gráfico de Dhara Sena, Raymundo Netto e Welton Travassos, com ilustrações de Guabiras e design de Welton Travassos.  O livro é constituído de 43 contos, sendo alguns mais breves que outros, mas que seguem de muito próximo aquilo que nos diz Edgar Allan Poe (1809 – 1849) em seu ensaio Filosofia da composição, de 1846, ou seja, observam as questões relativas ao tamanho, unidade de efeito e método lógico. É claro que os escritores não têm a obrigação de saber ou seguir tais direcionamentos, mas escrever da melhor maneira que conseguir, colocando no papel ou na tela aquilo que desejam, pois, como muito bem nos diz Sérgio Sant’Anna (2021:157): “o conto não existe”. Assim, não deve ser preocupação do contista dizer “o conto é isso”, “o conto é aquilo”. Mick Jagger, acrescenta Sant’Anna, não fala sobre as coisas: ele é a própria coisa acontecendo. E assim, mais importante que qualquer teorização, é fazer literatura que esteja sempre na vanguarda e em conexão com a realidade que insiste em esmagar o ser humano. No entanto, ainda conforme Sant’Anna (2021:160), não adianta fazer arte de vanguarda se tiranizo as pessoas ao meu redor e colaboro com o fascismo. Fazer literatura também é sobre isso.

Raymundo Netto é sabedor dos caminhos que atravessam a cultura, a arte e a literatura. É um escritor consciente das mudanças e dos impactos que um bom texto pode causar. Logo, ao trançar suas narrativas com o fio do riso, Netto o faz com a semelhante habilidade com a qual Dalton Trevisan costurava seus contos com o fio da dor, da faca no coração. Assim, ao mergulhar nas histórias que compõem o livro de contos em questão, percebe-se nitidamente o domínio da narrativa curta que o autor de Os Acangapebas adquiriu ao longo do tempo. Percebe-se, a partir de Coisas engraçadas de não se rir, um salto qualitativo na sua escrita, que o coloca entre os melhores autores cearenses contemporâneos. Por ser cronista (leiam do autor o livro Crônicas Absurdas de Segunda), Raymundo Netto traz para o seu conto as minúcias que os olhos treinados do cronista e do jornalista (o autor também é jornalista) conseguem capturar de maneira leve, objetiva e sutil, fazendo com que suas histórias pareçam aquelas conversas que ainda se dão a bordo de cadeiras na calçada.  

E é usando de sua habilidade enquanto escritor, que Raymundo Netto recorre ao riso como o élan necessário para costurar as narrativas do seu mais recente trabalho. Dessa forma, em Coisas engraçadas de não se rir, o riso se apresenta como forma de subversão e corta tal qual a faca só lâmina de João Cabral de Melo Neto, ou como na releitura de A palo seco, de Belchior, quando diz: “e eu quero é que esse canto torto/feito faca corte a carne de vocês”. A subversão é, conforme o dicionário Aurélio (2010), o ato ou o efeito de subverter (-se). É ainda a insubordinação às leis ou às autoridades constituídas. É a revolta contra elas. É a destruição, a transformação da ordem política, social e econômica estabelecida. É uma revolução. Assim sendo, o verbo subverter abriga o sentido de voltar de baixo para cima; revolver, agitar e, entre outros, revolucionar. E é também pra isso que serve a literatura.

No conto de Raymundo Netto, essa subversão se dá aos olhos do leitor quando o autor se utiliza do cômico e do riso, unindo tudo aquilo a que se propõe na construção dos contos que compõem o livro. Assim sendo, é preciso lembrar que conforme Henri Bergson (1859 – 1941), em seu livro O Riso – Ensaio sobre a significação da comicidade, de 1899, que apenas o humano é cômico. Uma paisagem, afirma ele, poderá ser bela, graciosa, sublime, insignificante ou feia; mas nunca será risível. Bergson lembra que é bastante comum ouvirmos a expressão “o homem é o único animal que sabe rir”. Para ele, essa expressão ficaria mais completa se a ela fosse acrescido outra que diz “um animal que faz rir”. E assim teríamos: O homem é o único animal que ri e que faz rir. Ainda conforme Bergson, o riso é sempre “o riso de um grupo” e “tem uma função social”. Mas afinal, o que devemos compreender pela palavra “riso”? O riso consiste no ato ou efeito de rir. Também pode ser compreendido como alegria, satisfação ou coisa ridícula. Rir também significa zombar ou ridicularizar. Destarte, o riso é por natureza, subversivo, ou seja, é algo capaz de transformar ou destruir o que está posto, estabelecido.

Por muito tempo na história da humanidade, o riso foi considerado pecado, coisa do diabo. Isso ocorria, certamente, pela capacidade que tem o riso de ridicularizar; subvertendo valores estabelecidos e tidos como imutáveis. Assim sendo, o riso foi por muito tempo considerado não apenas um pecado mortal, mas imoral e destruidor do Estado e da fé, por exemplo. Dessa forma, o riso foi censurado, sendo punidos com a morte todos aqueles que ousassem desafiar a Inquisição. Lembremos, por exemplo, das passagens nas quais os monges copistas são assassinados no livro O Nome da Rosa (1980), de Umberto Eco por, teoricamente estarem rindo a partir da leitura que faziam do livro A comédia, supostamente o segundo livro da Poética, escrito por Aristóteles.  Em tempos outros, sob sistemas autoritários, o riso continuou a ser perseguido e criminalizado. Muitos artistas, no entanto, utilizaram sua arte para fazer frente aos desmandos das elites políticas, ao arcaísmo da sociedade, bem como ao Estado e seus aparelhos ideológicos constituídos. Assim sendo, é possível afirmar que o autor de Coisas engraçadas de não se rir se utiliza do riso como forma de subverter determinados valores socioculturais observáveis no espaço e no tempo da produção dos seus contos. O riso, tal como está dito no livro de Umberto Eco, mata o temor.

E é por essa razão, entre inúmeras outras, que Coisas engraçadas de não se rir, de Raymundo Netto, mostra-se em consonância com seu tempo por seu caráter universal, contestatório e atemporal, e assim o será enquanto houver alguém que, mesmo pelos cantos da boca, insista em rir do que quer que seja.

sábado, 23 de agosto de 2025

MATEUS DA SILVA E A BELEZA DO MUNDO

 

Para Mateus da Silva

(in memoriam)

 

Mateus da Silva é uma dessas figuras singulares. Artista plástico, escultor, poeta e quase um dândi às avessas. Mateus mora na cidade de Fortaleza, a terra do sol. Mas, com ou sem sol, Mateus conseguiria se virar em qualquer lugar. Conheci o Mateus, não lembro muito bem quando. Mas faz tempo, muito tempo. Não sei se tem mulher, irmãos, filhos, pai ou mãe. Apenas conheci o Mateus e me apaixonei pela sua capacidade de pintar coisas que sempre imaginei, mas que jamais saberia transformar em arte. Também me apaixonei pela sua capacidade de me oferecer quadros, que nunca me recusaria comprar. Assim, devo ter umas dez telas pintadas por ele. São abstratos, naturezas mortas e outras coisas "inclassificáveis", mas igualmente belas. Prefiro os abstratos, pois gosto de imaginar coisas, "criar" a partir daquilo que já está posto. Deduzir, inferir.

 


Já faz muito tempo que não encontro Mateus. Ele não tem dado o ar da graça. Sumiu feito leite. Mas talvez estejamos apenas em desencontro, uma vez que mudei de casa, de cidade. O fato é que sinto falta do Mateus. Por onde andará Stephen Fry? A última vez que vi Stephen Fry, digo, Mateus, foi num domingo de um ano qualquer. Ele chegou com uma pasta debaixo do braço, sentou, cruzou as pernas e, ao tomar café, disparou: "Trouxe meu livro para você ler, ajustar e escrever o prefácio". E eu: Como assim? O "livro", de umas cinquenta páginas chama-se Da Beleza do Mundo. É, na verdade, o esboço de um livro de poemas. Diga-se de passagem, poemas muito bons. Poemas que trazem em si a consistência da sensibilidade do homem Mateus, do artista plástico, do poeta. Digo esboço, pois o livro ainda não tomou forma. Ainda está impresso e fotocopiado.

 Da Beleza do Mundo está dividido em cinco partes: "Poemas pássaros", "Da beleza do mundo", "Poemas curtos", "Visita a Van Gogh (Impressões do médico)" e "Caleidoscópio (Diversos e dispersos)". No poema "Da beleza do mundo" tem-se: "Não será o exterior sombrio/nem valores dilapidados pela civilização/que erguerão muros de Berlin/em meio à minha clara visão da beleza escancarada do mundo/Meu cavalo é alado/e como os deuses/desvendo céus/Meus castelos são reais/e eu habito neles". Que lindeza!

 Naquele mesmo dia, Mateus também me deu um livro de Anna Maria Ortese chamado O pássaro da dor. Anna Maria Ortese nasceu em Roma e residiu um longo tempo em Nápoles; desde 1975 mora na Lugúria (Norte da Itália). O pássaro da dor (Il cardillo addolorato) é sua primeira obra publicada no Brasil. Na dedicatória (não aceito livros sem dedicatória) Mateus escreveu: "Para o amigo Carlos, que sabe apreciar uma boa leitura". A data da dedicatória é de abril de 2005. Desde então não mais o encontrei. Sei que ele deve estar andando por aí, botando sua "cabeça de girassol" pra pensar; maquinando o próximo trabalho, o próximo passo.

 Em outro poema, "A estada do cigano", o poeta diz: "A estada do cigano/será mais longa/percorrer as estradas/Agora está mais difícil/Existem tantas fronteiras/e os pequenos precisam estudar/Ah! Mas quando é lua cheia/coçam-me os pés/e os cavalos relincham inquietos". Não sei bem quando será lua cheia. Mas até lá, talvez os pés do poeta cocem e, das estradas das tantas fronteiras, reapareça. Por essas épocas, talvez eu já tenha conseguido pensar um prefácio que mereça estar à altura dos poemas Da Beleza do Mundo.

 

NOTA: O texto acima está publicado originalmente em:

 CARVALHO, Carlos. Memória de peixe. Fortaleza: Universidade de Fortaleza, 2010.

 Fiz algumas alterações e o posto aqui em homenagem ao amigo Mateus da Silva, que se encantou em 2025.


 

terça-feira, 19 de agosto de 2025

Arte é desacordo: o ensaio de Bob Dylan

 


Quando políticos autoritários assumem o poder, cultura e educação são as primeiras áreas atacadas. Não poderia ser diferente, uma vez que são os artistas e os educadores que doam suas vidas em defesa da formação do pensamento crítico, sendo a principal barreira capaz de deter o avanço de políticas extremistas. A arte é subversiva e, na cabeça dessas pessoas, deve ser destruída. Não custa lembrar o que Joseph Goebbels, ministro da propaganda de Hitler, disse: “a arte alemã da próxima década será heroica e imperativa”, o que resultou na queima de milhares de livros, bem como na perseguição, tortura e morte de inúmeros artistas, pois, aqueles que queimam livros, mais cedo ou mais tarde começam a queimar pessoas.

Não faz muito tempo, do lado de baixo do equador, o secretário nacional da cultura daquele (des)governo extremista, cujo líder máximo é hoje réu no STF por ter tramado um golpe de estado, fez um discurso medonho em tudo semelhante ao do nazista Goebbels. Em sua asquerosa fala, o “cidadão de bem” (Alma White gargalha) afirmou que a “arte brasileira da próxima década será heroica e imperativa”. Certamente que todas as semelhanças entre os dois discursos não passam de mera coincidência retórica. Aham!

Recentemente, Donald Trump censurou os museus do país e ordenou que as exposições exaltem a “grandeza americana”. Estaria o “grande irmão” falando da imposição de uma arte nacional, heroica e imperativa?  Não sei. Só sei que já vimos esse filme antes e sabemos bem como termina. No caso, o nazismo foi derrotado, o tal do secretário de cultura voltou para a lata do lixo da qual nunca deveria ter saído, e seu chefe está prestes a puxar uns trinta anos de cana. Quanto ao pato manco, a derrocada parece vir a galope. O “laranjão” desceu pra brincar no parquinho, mas não combinou com os chineses.  

A arte sempre incomodou e continuará incomodando essa gente autoritária e tacanha, que costuma puxar o revólver sempre que se fala em cultura, uma vez que todos os seus acordos e conchavos são baseados em dinheiro, não em arte. Arte é desacordo. E é falando sobre arte (e política) que Bob Dylan inicia o ensaio sobre a música “Money Honey” (p.35-38), de Bob Miller. Diz ele: “Arte é desacordo. Dinheiro é acordo. Eu gosto de Caravaggio, você gosta de Basquiat. Nós gostamos de Frida Kahlo, e Warhol não nos toca. E é assim que a arte prospera, com embates espirituosos. É por isso que não pode haver uma forma nacional de arte. Se houver tentativas de fazer isso, as arestas se dissolvem – o esforço para considerar todas as opiniões, a vontade de não ofender ninguém. Em pouco tempo, tudo se transforma em propaganda ou comercialismo”.

O texto em questão é apenas um dos 66 ensaios constituintes do livro A filosofia da música moderna (2022), publicado no Brasil no ano de 2023, com tradução de Bruna Beber e Julia Debasse. Trata-se do primeiro livro que Dylan publica depois de receber o prêmio Nobel de literatura em 2016. A obra, como afirmam as tradutoras, é “uma aula magistral sobre a arte e o ofício da composição”, cujos textos abarcam canções de Elvis Presley, Nina Simone, The Who, Hank Williams, The Clash e Johnny Cash, por exemplo. Além disso, os ensaios de Dylan discorrem sobre como o compositor pode fugir da armadilha das rimas fáceis, e ensina como uma única sílaba pode causar um impacto para melhor ou para pior na letra de uma canção. Como se isso fosse pouco, o autor de Tarântula (1970) e Crônicas (2004) ainda discorre sobre as relações observáveis entre o bluegrass e o heavy metal, costurando tudo isso com informações que comprovam seu amplo conhecimento sobre os mais variados assuntos da cultura universal. 

Como a arte, e mais especificamente a música, não está “perdida no espaço” nem brota no canteiro da rua, antes de mergulhar nas análises Bob Dylan contextualiza a canção a ser abordada, traçando conexões com a realidade e tomando com eixo de sustentação tudo aquilo que implica naquilo que se compreende por condição humana. E assim sendo, não é nenhum exagero afirmar que A filosofia da música moderna é uma obra de arte em todos os seus aspectos, inclusive os gráficos, escrita na prosa inconfundível de Bob Dylan. Ao final da leitura de cada texto, percebe-se que aqueles ensaios não são “apenas” ensaios, mas poemas em prosa paridos pela mente única de um dos artistas mais relevantes de todos os tempos.

quinta-feira, 10 de abril de 2025

Aquilo que não te abraça mais


Somente agora, em meio a correria da minha distópica vida cotidiana, parei para ouvir com mais atenção dois discos cujas temáticas dialogam muito entre si, e são duas das maiores contribuições recentes à nossa música. O primeiro é Almério e Martins – Ao vivo no parque (2022), composto de 19 canções. Uma lindeza de disco, que se destaca pelas vozes fortes e doces dos dois artistas, bem como pela excelência das suas composições, como observado nas maravilhosas “Antes de você chegar”: “Tem uma noite chegando na janela/Por que você não deixa tudo e vem me ver?...”. E “Me dê”: “Se você tiver de sobra um pra me subverter, meu bem, me dê, me dê/Eu que nunca fui tão certo, faço pose de quem não te lê/Mas eu leio sim, eu só não sei se você quer...”. O que é isso, senão Pernambuco cantando para o mundo?




O segundo disco, trabalho solo de Martins, chama-se Interessante e obsceno (2023). E a demora em ouvir os dois trabalhos, praticamente três anos após terem sido lançados, é que tenho a mania de guardar livros, filmes e discos para ler, ver e ouvir quando já não se falam muito sobre eles, quando já surgiram outras coisas para ocupar lugar na mídia. Tenho agido assim já faz bastante tempo e não me arrependo, pois tenho aprendido que esse hiato na apreciação de um trabalho de arte entre o período que é lançado até o momento que o escuto, no caso dos discos, me permite uma “degustação” silenciosa, distante de qualquer forma de pressão ou dos riscos de um julgamento apressado.  

O disco Interessante e obsceno, produzido por Rafael Ramos, é composto de 12 canções de autoria de Martins e também em parceria com outros compositores. Assim, tem-se: “Tua voz”, “Não duvido”, “Tá tudo bem”, “Deixe”, “Interessante e obsceno”, “Eu e você sempre”, “Tem problema não”, “Deixa rolar”, “Arrepia”, “Nu”, “Céu da boca” e “Voltar pra si”. As composições de Martins se equilibram entre a leveza e o peso daquilo que melhor caracteriza a feitura de uma grande canção, abrangendo temáticas que vão do banal ao complexo, descortinadas na suavidade da voz singular do artista. A riqueza poética da canção de Martins não nos causa nenhuma surpresa, pois quem vem de Pernambuco, como dito em “Tua voz”, traz um rio dentro do peito.

A canção que dá título ao álbum já havia sido apresentada um ano antes no disco Almério e Martins – Ao vivo no parque, o qual mencionamos no primeiro parágrafo deste texto. De todas as canções do disco, não temo em dizer que “Interessante e obsceno” é, sem sombra de dúvidas, uma das mais belas já surgida na Música Popular Brasileira. Não consigo parar de ouvir. E se assim o é, não importa se foi ouvida quando do seu lançamento ou se será ouvida nos próximos 50 anos, atemporal que é. Os vídeos disponíveis na Internet dos shows realizados pela dupla constituem uma beleza à parte. Ao vê-los, temos a chance de conferir o entrosamento entre os dois artistas, a conexão com os demais músicos da banda, o cenário, a iluminação e a participação do público.

“Interessante e obsceno” é potente e certeira, quando nos diz que não devemos esperar do amor aquilo que nos faz pequenos, pois quando o amor já não existe e o amado/amada te virou as costas, deu de ombros e partiu, é importante, como diz a canção, não se sabotar nem trocar olhares por acenos. Que os desejos jamais se acomodem! Ao contrário, que sejam interessantes e obscenos. E se nada mais houver a ser dito, pois não há a quem ser dito, é chegada a hora de seguir em frente e soltar aquilo que não te abraça mais

sábado, 29 de março de 2025

IsoladaMente, de Elimax de Andrade

 A aridez do dia a dia empurra a poesia para as mais íngremes estâncias. Da beira do abismo da existência, o poeta a tudo observa com os olhos lassos de quem sente o mundo pesar por sobre seus ombros. E como pesa! O que o poeta não sabe é que o mesmo abismo de beleza e dor para o qual ele olha, também o olha de volta. E dessa união existencial é que brota, sim, a palavra tornada verbo, feita carne, amor e dor.

Muita gente se recusa a ler os jovens poetas, defendendo que a maioria deles escreve uma poesia “sem pé nem cabeça” e que não dizem coisa com coisa. Em parte, isso é verdade. Contudo, não os ler ou esperar que esses imberbes poetas escrevam tal qual um T. S. Eliot ou um Bob Dylan é algo que beira o nonsense. Na profusão dos inúmeros poetas que surgem todos os dias, fica muito difícil acompanhar tudo o que tem sido publicado. Nesse contexto, destaco a poesia de Elimax de Andrade, publicada em dois livros. O primeiro chama-se Meu fantástico mundo real, publicado no ano de 2014 pela editora Chiado, na Coleção Prazeres Poéticos, no Brasil e em Portugal. A obra é constituída de 40 poemas que abordam temáticas, na sua maioria, de caráter existencial. Entre elas: amor, família, vida, morte. Enfim, elementos constituintes da condição humana. Embora a poesia de Andrade ainda se mostre bastante “verde” no livro em questão, já se percebe aqui um poeta em consonância com a arte da poesia, cabendo a ele amadurecê-la (ou não) e seguir em frente. No verso de Meu fantástico mundo real, tem-se um poema de Horácio Dídimo em louvor à poesia de Elimax de Andrade. E isso não é coisa pouca não, prezado leitor! É Horácio Dídimo falando para o mundo.



O segundo livro, por sua vez, é intitulado IsoladaMente, e foi publicado no ano de 2020, ou seja, seis anos após a publicação do Meu fantástico mundo real. Logo, percebe-se um amadurecimento na poesia produzida pelo poeta de Limoeiro do Norte, interior do Ceará. IsoladaMente é composto de 41 poemas. Se em Meu fantástico mundo real há uma predominância de poemas longos, que reproduzem as rimas e os ritmos do Cordel, em IsoladaMente não é isso que se tem. O que se vê é a recorrência de poemas curtos, que superam em muito os longos. E talvez seja, a nosso ver, na produção de poemas breves que o autor devesse investir mais. Como comprovação do que afirmamos, observemos o poema “Existacionamento” (p. 11) - esse neologismo é maravilhoso! - quando diz: “Quando repousa em meu peito/Do pensamento decolo/Repouso o corpo em teu colo/Me desloco suavemente/Desloucamente/E, ônibus especial afoguetado/Pouso em ti, nave mãe/Estacionado”. E em “complemento” à leitura de “Existacionamento”, o poema “Calma” (p.49) nos diz: “Em minhas veias, estradas desaceleram os carmas/Em transe meus pensamentos transitam lágrimas/Prevalece a calmaria onde já eu-for-ia/Hoje frio e sonolento/Ondas sem vento/Existacionamento”.

Além da qualidade do texto poético de Andrade, uma outra questão que precisa ser destacada é arte das capas de ambos os livros, produzidas por Enoque Ferreira Cardozo. No caso da capa de Meu fantástico mundo real, publicado também em Portugal, tem-se a intervenção de Ana Curro, a partir, como dito, da capa de Enoque Cardozo. No mais, que jamais deixemos de ler Bob Dylan e T.S. Eliot, mas que também leiamos jovens poetas como Elimax de Andrade.