segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

QUANDO O POVO FAZ SEUS PRÓPRIOS SANTOS

Em Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), filme de Glauber Rocha, há a seguinte fala: "Mais forte são os poderes do povo". Lembrei dessa frase ao ler o ensaio de Dellano Rios denominado O Povo Fez Sua Santa, trabalho vencedor do Prêmio Guilherme Studart, publicado em 2011 pela Secretaria de Cultura do Estado do Ceará. Na referida obra, o autor discorre sobre as maneiras encontradas pelo povo ao criar seus próprios objetos de devoção, incluindo seus próprios santos, independentemente das vontade da Igreja Católica. Essas eleições, são chamadas por Paul Zumthor de "canonizações espontâneas". Para o referido autor, trata-se de um fenômeno sociológico, segundo o qual indivíduos vivos,imaginários ou mortos passam a ser reconhecidos como santos, tornando-se os meios pelos quais seus devotos entram em contato direto com Deus. E é ai que o povo mostra que seus poderes são maiores e mais fortes do que ele mesmo pode supor. E ao falarmos desses assuntos, não há como não lembrarmos da região do Cariri, no Ceará, onde se tem um dos principais exemplos dessa forma de canonização: O Padre Cícero Romão Batista.

Mas nem só de Padre Cícero vive a hagiologia brasileira. E para provar isso, o pesquisador Dellano Rios viajou até a cidade de Aurora, localizada na microrregião do Cariri, 485 quilômetros  ao sul de Fortaleza, em busca de dados que o levassem a compreender as razões que fizeram com que Francisca Augusta da Silva, uma menina de 16 anos, morta pelo ex-noivo, se tornasse para o povo daquela cidade, uma mártir. No Ceará, como afirma Gilmar de Carvalho no prefácio à obra de Rios, outros santos também foram "canonizados" pelo povo. Entre tantos, cita o pesquisador: Mártir Isabel, em Guaraciaba do Norte, Francisca Carla, em Tianguá, e o soldado Hortênsio, em Viçosa do Ceará. No caso de Mártir Francisca, o que chamou a atenção de Dellano Rios, o que lhe chamou primeiramente a atenção foi o livro Paixão e Sangue de Mártir Francisca (2001), de Rozanne Quezado, ponto de partida para sua monografia de conclusão de curso na Universidade Federal do Ceará, denominada de Mártir Francisca de Aurora: memória, narrativa e tradição (2004). E assim sendo, no que concerne aos aportes teóricos, uma vez que a abordagem escolhida por Rios seja a da Semiótica da Cultura, seu texto necessariamente dialoga com a Sociologia, a História, a Literatura, a Etnografia, a Antropologia e a Semiologia; bem como vários outros campos de conhecimento; o que torna o texto do referido autor uma prazerosa peça ensaística, sem a limitação bibliográfica comum a esse tipo de texto.
                                                  
Todo o ensaio em questão, excetuando-se os aportes teóricos que lhe dão sustentação, trata do fato de que uma menina de 16 anos é esfaqueada e morta pelo seu ex-noivo no dia 09 de fevereiro de 1958, sendo eleita santa pelo povo da sua comunidade. Santos feitos assim, são definidos por Câmara Cascudo em seu ensaio O povo faz seu santo (2002), de "santos do povo". Para Câmara Cascudo (1898 - 1986), os santos do povo são definidos por dois aspectos. O primeiro, refere-se ao reconhecimento massivo do santo pelo povo. Já o segundo aspecto, por sua vez, diz respeito ao não reconhecimento deste santo pela Igreja Católica. Dessa forma, os dois aspectos apontados por Cascudo compreendem o caso da santa de Aurora. Embora o ensaio do antropólogo potiguar contemple alguns exemplos de santos feitos assim, não há nele nenhuma referência ao caso da menina-santa de Aurora.

O ensaio de Dellano Rios está dividido em três capítulos: No primeiro tem-se A Autoridade da Escrita; no segundo, O Sagrado e o Verbo; enquanto no terceiro tem-se O Campo Santo. Sobre o conteúdo dos capítulos do livro em análise, recorremos ao que diz o próprio Dellano Rios: "No primeiro capítulo, investigo a aparição e as funções desempenhadas pela escrita na tradição narrativa do culto. Na sequência, recorro à oralidade, às versões da história que são narradas pelos devotos da santa de Aurora. Na terceira e última parte do texto, a investigação se dá sobre as práticas da devoção, experiências que estão na base das narrações e que por elas são transformadas". Entre os estudiosos utilizados como embasamento teórico na produção do seu texto, é notória a presença de Paul Zumthor, principalmente da sua obra A Letra e a Voz (1999).

Assim, O Povo Fez Sua Santa (2011) de Dellano Rios, constitui leitura obrigatória para todos aqueles que apreciam um bom ensaio. E como estão em falta bons ensaístas!




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