Samuel Beckett |
Samuel Beckett disse certa vez, que preferia a França em guerra à
Irlanda em paz. Essa forte relação do autor com França talvez sirva para
justificar o motivo que levou o escritor irlandês a escrever quase toda sua
obra, primeiramente em francês. Muitos são os motivos, que contribuem para que
um escritor opte por escrever em uma língua, que não a sua. Isso se dá, na
maioria das vezes, por questões político-ideológicas ou ainda quando aquele
escritor é membro de uma comunidade linguística pequena. Contudo, não era esse
o caso do autor em questão, uma vez que este não era, nesse sentido, um
exilado, conforme lembra Martin Esslin (1968). Perguntado certa vez sobre o
motivo que o levara a escrever primeiramente em francês, Beckett respondeu: “Parce qu’em français c’est plus facile
d’ecrire sans style”. Com isso, Martin Esslin compreende que, ao escrever
na sua própria língua, o escritor corre o risco de se deixar levar pela
liberdade que esta permite. Ao contrário, escrevendo em outra língua, este
mesmo escritor seria forçado a exigir de si mesmo uma maior disciplina,
objetivando dizer o que pretende com o máximo de clareza e economia de
expressão. E se assim o é, acreditamos, como Esslin, que os objetivos de
Beckett foram alcançados. Observando-se os principais trabalhos do autor irlandês
tem-se a constatação de uma maior preocupação
perder tempo tentando descobrir, compreender, explicar ou demonstrar o que, conforme Steiner (1990), esse “Mestre da nuance e do crepúsculo” quer dizer. Qualquer tentativa de se chegar a uma interpretação clara e certa, por exemplo, do estabelecimento da identidade de Godot através de uma análise crítica seria tão tola, afirma Martin Esslin, quanto tentar descobrir contornos definidos escondidos por trás do chiaroscuro de uma tela de Rembrandt pelo simples método de se raspar a tinta. Uma obra, sabemos, sempre quer dizer muito mais do que acreditamos ela possa dizer. Obras como a de Samuel Beckett estão preocupadas em transmitir, reforça Esslin, o senso de mistério, perturbação e ansiedade do autor quando confrontado com a condição humana, bem como o seu desespero diante de sua incapacidade de encontrar um sentido na existência. E é exatamente a condição humana (Beckett a chama de “condição desumana”) e a busca por um sentido na existência, que constituem o cerne da obra do autor em análise. Suas obras Esperando Godot (1952), Fim de Partida (1957) e Dias Felizes (1961), por exemplo, servem como referência para a compreensão do que afirmamos até aqui. Vejamos um pouco sobre Esperando Godot.
Era agosto de 1942. Paris estava ocupada pelas forças alemãs. A
brutalidade, a prisão de alguns amigos da Resistência e o declarado
anti-semitismo do regime invasor contribuíram para que Beckett abandonasse
Paris, indo trabalhar como agricultor em Vaucluse, sul da França. Somente com a
libertação de Paris, em 1945, é que Beckett retorna ao seu apartamento nos
limites de Montparnasse, Paris. Nos cinco anos que se seguiram, o autor
trabalhou incansavelmente, escrevendo algumas de suas peças mais importantes: Eleutheria, Esperando Godot e Fim de Partida.
Escreve a trilogia Molloy, Malone Morre e
O Inominável. Escreve ainda Mercier
et Camier e Textos para Nada. De toda a obra beckettiana, Esperando Godot é, certamente, a mais
conhecida e a mais encenada. Escrita em francês, Esperando Godot (Em attendant
Godot) teria sido escrita no ano de 1949. De início foi rejeitada pelo
mercado editorial, que ainda não possuía as ferramentas necessárias para
compreender, embora possuísse ignorância suficiente para recusar grande parte
da obra produzida no período. Vários empresários do meio artístico desprezaram Esperando Godot por, segundo eles, não
possuir qualidade dramática. Em tempos de guerra, acreditamos, não é
aconselhado atirar no próprio pé como fizeram aqueles senhores. Roger Blin,
ator próximo a Jean Genet e Jean Cocteau, assumiu o risco e, sob sua direção
(Blin fez o papel de Pozzo), Esperando
Godot estreou no palco do Théatre de Babylone, no Boulevard Raspail,
tornando-se um dos maiores sucessos do teatro do pós-guerra. Embora não
tenhamos dados que possam comprovar, das quatrocentas apresentações feitas no
Théatre de Babylone até os nossos dias, Esperando
o Godot já deve ter sido traduzida e montada em diferentes idiomas e
lugares, se não em todo o mundo. Conforme Fábio de Souza Andrade, no prefácio à
edição brasileira da obra, Godot já
foi encenada por internos no interior de um presídio, em Sarajevo dividida e
sitiada, com atores de várias etnias; durante o apharteid, só com negros atuando e também com um elenco composto
apenas por mulheres, bem como encenações dirigidas pelo próprio Beckett. Assim,
concordamos com Andrade quando este afirma que já não esperamos por Godot. É
ele quem vem ao nosso encontro. Godot, afirma o autor de Beckett: O Silêncio Possível (2001), é o ausente que ganhou vida
própria, deixando rastros por toda parte. Mas o que há em Esperando Godot, se sabemos nada haver em Esperando Godot?
Conforme Martin Esslin (1968), Esperando
Godot não conta uma história; explora uma situação estática. “Não acontece
nada, ninguém vem, ninguém vai, é horrível”. A situação estática apontada pelo
autor de O Teatro do Absurdo (1968)
consiste em uma das inovações trazidas por Beckett ao teatro modernista. Se no
chamado teatro convencional a ação é o que motiva o espetáculo, em Beckett é a
imobilidade. E é assim que em Fim de
Partida (1957), Ham and Clov, Nagg e Nell dividem um abrigo que, ao mesmo
tempo, lhes é lar e confinamento. Ham está preso a uma cadeira. Nagg e Nell,
seus pais, estão limitados, cada um, ao seu camburão de lixo. Suas limitações
também são físicas, pois não possuem membros completos; mas apenas cotos. Em Dias Felizes (1961), Winnie e Willie
dividem o palco. Enquanto Willie tem certa “mobilidade”, Winnie aparece
enterrada até a cintura. O grau de imobilidade de
Winnie aumenta no segundo
ato, quando estará enterrada até o pescoço.
Em Esperando Godot também não
é diferente. O lugar é ermo. À beira de uma estrada, no meio do nada. Perto de uma
árvore, Vladimir e Estragon, dois vagabundos esperam Godot. Ao final do
primeiro ato, um menino entra em cena e avisa que o Sr. Godot não virá, mas
certamente estará lá amanhã para o encontro marcado com os dois clowns. O segundo ato termina da mesma forma,
com as mesmas falas. Neste caso, ditas em ordem inversa. Esslin (1968) lembra,
que a sequência dos acontecimentos e o diálogo diferem em cada ato. De cada vez
Vladimir e Estragon encontram outro par de personagens, Pozzo e Lucky, senhor e
escravo, em diferentes circunstâncias. Em cada ato, reforça Esslin, os dois
vagabundos tentam o suicídio e fracassam, por razões diversas. Tais variações,
no entanto, servem apenas para enfatizar o fato de que essencialmente tudo se
resume sempre à mesma coisa: a espera. Vladimir e Estragon são duplos, como os
vários outros duplos de Beckett. Mas também podem ser muitos. Impossível não
vê-los e não lembrarmos, por exemplo, Laurel e Hardy, o Gordo e o Magro. Ou
vê-los nas figuras dos dois ladrões crucificados com Cristo. Para outros,
também podem ser representações das figuras de Caim e Abel. Sobre as relações
de Godot com a Bíblia protestante e o cristianismo, vejamos o que observa
Harold Bloom (1995):
“... Godot é obcecado pela Bíblia protestante: Caim e
Cristo pairam por perto, mas Godot não é mais Deus que o pavoroso Pozzo. Seu
nome é arbitrário e sem sentido, qualquer que seja a origem, em Balzac (a quem
Beckett detestava) ou na vida do próprio Beckett. Quanto ao cristianismo e Esperando Godot, Beckett foi brutalmente
definitivo: “O cristianismo é uma mitologia com a qual estou perfeitamente
familiarizado, e por isso a uso.” ( BLOOM, 1995:475)
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