segunda-feira, 31 de outubro de 2016

UM ÚTERO É DO TAMANHO DE UM PUNHO, DE ANGÉLICA FREITAS

Tem-se a impressão (pode ser apenas impressão) de que a poesia brasileira está devendo a nós, leitores, um acontecimento, ou seja, sente-se a falta de trabalhos poéticos de fôlego nas prateleiras das nossas livrarias. Não queremos dizer com isso, que eles não existam, mas que não têm conseguido chegar ao publico leitor da mesma forma como os trabalhos em prosa. É claro que há uma série de questões que explicam por qual razão das coisas se darem como se dão.

Não trataremos dessas questões aqui, mas da poesia que consegue furar o cerco da mesmice editorial e se afirmar enquanto trabalho de altíssima qualidade literária. Nesse caso, falamos especificamente do livro Um útero é do tamanho de um punho (2012), de Angélica Freitas, já na sua terceira reimpressão (2015), pela editora Cosac Naify. Trata-se do seu segundo livro. O primeiro chama-se Rilke Shake, tendo sido publicado pela mesma editora, no ano de 2007. Um útero é do tamanho de um punho já traz na estrutura do título duas referências, que são balizadoras para a compreensão da obra em questão. Embora o tamanho de um útero seja variável, não sendo necessariamente do tamanho de um punho (talvez por essa razão, a poeta tenha usado "um útero" em vez de "o útero").

A imagem do útero, evocada no título do trabalho, aponta para a parte do corpo da mulher, responsável por gestar a própria vida, ou seja, a criação. Nesse caso, vida, criação e poesia se misturam sob o aspecto metafórico do útero. A referência ao punho, por sua vez, pode ser compreendida como indicativo de força e de resistência, principalmente quando apontado para ao alto. Assim sendo, é possível deduzir que resistência e força são naturais e inerentes ao mais íntimo do ser feminino.

Pode-se, inclusive, afirmar que o livro de Angélica Freitas é feminino, na mais ampla acepção do termo, por ter como referência poética a figura da mulher. Melhor seria dizer, das mulheres, uma vez que são inúmeras aquelas que surgem como “eu lírico” nos diversos poemas que compõem a obra. Contudo, deve-se guardar cautela para não cair na armadilha ideológica de achar que se trata de uma poesia panfletária, ativista ou engajada. A poesia de Um útero é do tamanho de um punho permite uma leitura que comporta tudo isso, mas que não se reduz ou se limita a isso ou aquilo, propiciando uma amplitude e uma abertura que podem ser exploradas sob os mais diversos pontos de vista.

O livro está dividido em sete partes. A primeira chama-se “Uma mulher limpa”, composta de catorze poemas. A segunda, “Mulher de”, contém dez poemas, enquanto “A mulher é uma construção” traz sete textos. A quarta parte do livro e que lhe dá nome. Intitula-se “Um útero é do tamanho de um punho”, indo da página 59 até a página 66, o maior poema do livro. Na sequência, as partes: “3 poemas com auxílio do Google”, “Argentina” e “O livro do coração dos trouxas”. Além disso, o livro traz uma nota sobre a autora, bem como uma breve apresentação da obra, de autoria de Carlito Azevedo.

Angélica Freitas
Os trinta e seis poemas que compõem a obra de Angélica Freitas são escritos em forma livre e dialogam, estilisticamente falando, com a poesia de Orides Fontela (1940 - 1998), Paulo Leminski (1944 - 1989) e Ana Cristina Cesar (1952 – 1983). O aspecto contemporâneo da sua poesia é permeado tanto pela ironia, quanto pelo nonsense; o que, a nosso ver, exige atenção redobrada do leitor. Um exemplo do que afirmamos pode ser observado na “brincadeira” que a autora faz ao usar a língua do i, que tem como objetivo trocar todas as vogais por i. Nessa “língua”, Um útero é do tamanho de um punho ficaria Im itiri i di timinhi di im pinhi (p.59). Além desse aspecto formal, a poeta também opta pelo uso de letras minúsculas na composição do seu texto, o que a aproxima de autores como e.e.cumimngs, por exemplo.

Outro aspecto presente nos poemas da referida obra é a recorrência de referências a escritores. Elizabeth Bishop, por exemplo, surge no poema “mulher de posses” (p. 34), quando lemos: “... e se é uma arte perder”. Henry Miller está no poema “Mulher de malandro” (p.40). Homero é referido no poema “Ítaca” (p.50). Borges e Barthes aparecem em “metonímia” (p.52) e Frida Khalo, na página 60. Barthes retorna na página 79. Sheherazade (= She/He+razade) surge na página 88, enquanto Goddard está na página 90.

Além disso, Angélica Freitas usa e abusa de elementos da cultura pop, demonstrando maestria no uso de tais referências. Dessa forma, para citarmos apenas algumas, na página 87, encontramos referências musicais como New Order e Suzanne Vega (Será que a poeta gosta de Luka?). Há ainda quadrinhos, artes plásticas e outras semioses que, aparentemente espalhadas e dispersas, constituem uma enorme rede de significações poéticas, que põem o feminino como leitmotiv da poesia de Um útero é do tamanho de um punho. E isso, por si só, já faz da poesia de Angélica Freitas um acontecimento.

A poesia de Angélica Freitas permite, como qualquer obra literária, um oceano de interpretações. Nossa intenção não era fazer uma leitura equivocada. Mas como diz a poeta (p.52): “... todas as leituras de poesia são equivocadas”. Assim sendo, por qual razão resistir à tentação do equívoco? Boa leitura!

domingo, 16 de outubro de 2016

UM NOBEL PARA O POETA BOB DYLAN

Em diferentes regiões do Brasil se utiliza muito a lexia “demorô”, corruptela de “demorou”, para se referir a situações que, finalmente aconteceram, mas que deveriam ter acontecido bem antes. Embora se trate de uma expressão tipicamente brasileira, provavelmente outras línguas devam ter expressões que sirvam para a mesma situação. E se assim o for, boa parte do mundo disse “demorô”, hoje, quando Sara Daniues, secretária permanente da Academia Sueca, anunciou o nome de Bob Dylan, como o vencedor do prêmio Nobel de Literatura de 2016. Para a referida Academia, o autor de “Like a Rolling Stone” mereceu o prêmio de 2016 “por ter criado uma nova expressão poética dentro da grande tradição norte-americana da canção”.

A Academia sueca poderia ter dito “qualquer coisa”, como justificativa para premiar Dylan, pois tudo o que pudesse dizer resvalaria na constatação do óbvio, uma vez que a obra de Bob Dylan ultrapassa o campo meramente musical, se espalhando pelo campo da literatura propriamente dita. Em outras palavras, é simplório conceber as letras do referido artista como “letras”, simplesmente, pois Bob Dylan é, na verdade, um dos mais relevantes poetas do século XX, destilando sua poesia por meio da canção. Dessa maneira, assim como Chico Buarque e Belchior, Bob Dylan rompe os limites dos gêneros literários, produzindo letras que são menos letras, e mais poemas.

É claro que alguns pesquisadores, engessados que estão (ou “que são”?), ainda não conseguem (ou não querem) compreender as relações que se dão entre a música e a poesia. Para muitos, são coisas que não se pode misturar; sequer aproximar, tendo em vista letra de música ser algo que se encontra em um plano muito inferior ao da poesia. Dessa forma, a premiação de Bob Dylan vem mexer com posicionamentos antigos, sólidos e conservadores a esse respeito. De 2016 em diante, contudo, uma nova maneira de se conceber a poesia passa a ser indispensável, uma vez que Bob Dylan está agora, oficialmente, ao lado de T.S. Eliot, Yeats e Wislawa Szymborska; por exemplo.

Deixemos claro, no entanto, que não é um Nobel para Dylan que o torna um grande poeta. Na verdade, é exatamente o contrário. É a qualidade, o alcance e o reconhecimento da sua obra poética que culminou na premiação. Dylan não precisava de prêmio algum. No entanto, o reconhecimento de Bob Dylan como merecedor do prêmio Nobel de Literatura do ano de 2016 aponta também para uma, mesmo que seja aparente e momentânea, nova perspectiva da Academia sueca em relação a diferentes manifestações da literatura. Talvez fosse o momento do próprio Prêmio se reestruturar e admitir que existem muitas formas de representações artísticas que mereceriam receber um prêmio de tal envergadura, mas que simplesmente não cabem nas categorias estabelecidas pela Academia.

Ao optar por premiar Dylan, a Academia acaba por premiar indiretamente todos os trovadores, repentistas, folk singers, professores e artistas que têm insistido na luta em defesa de uma cultura que possa ser cada vez mais abrangente e inclusiva, independentemente de língua, rótulo ou gênero.

O Nobel para Bob Dylan acaba também por ser uma premiação aos poetas da Geração Beat, aos heróis conhecidos e anônimos da década de 60 e, especialmente, ao poeta e ativista Woody Guthrie, sem o qual, possivelmente, Robert Zimmerman não teria se tornado Bob Dylan. E, como bem afirmou Leonard Cohen: "dar um Nobel ao Bob Dylan é como dar uma medalha ao Everest por ele ser a montanha mais alta da Terra". Melhor dedução, impossível!

O prêmio Nobel para Bob Dylan “demorô”, mas veio. Com ele, o mestre de “Blowin in the Wind” e “The times they are a changing” coroa uma carreira de sucesso, ativismo e poesia que dificilmente veremos surgir nos próximos cem anos. Por essas e outras razões, nos alegramos por Bob Dylan, pois descobrimos, baby Blue, que nem tudo está perdido.

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segunda-feira, 10 de outubro de 2016

O QUE APRENDI SENDO XINGADO NA INTERNET, DE LEONARDO SAKAMOTO

O ato de xingar é tão antigo quanto o ato de respirar, se alimentar ou beber água. O xingamento deve existir desde que o ser humano colocou os pés nesse planeta. Houve um tempo, inclusive, que xingar alguém foi considerado coisa comum, normal. “Normal”, é claro, do ponto de vista de quem xinga, pois para quem é xingado nada tem de “normal”, muito menos de aceitável. Houve também um tempo em que os xingados, geralmente as minorias, não tinham o direito de reclamar, nem que fosse apenas ao bispo (talvez fossem até xingados de novo), pois minoria tinha ficar calada e baixar a cabeça para tudo e para todos. Ainda bem, que não é mais assim.

Os tempos estão em constante mutação, como bem afirma Bob Dylan. Dessa forma, o que “há algum tempo era jovem e novo, hoje é antigo” e, como bem diz o poeta Belchior: “precisamos todos rejuvenescer”. Não rejuvenescer no corpo apenas, mas nas nossas cabeças e nos nossos corações, tendo em vista que existem inúmeros jovens, que são velhos de dar dó; enquanto muitos velhos são maravilhosamente jovens. Precisamos todos rejuvenescer, principalmente naquilo que diz respeito às nossas velhas opiniões formadas sobre tudo. Precisamos abrir nossas janelas da alma, para que somente dessa maneira consigamos ver a beleza da diversidade da qual se constitui o outro. Enquanto não conseguirmos colocar isso em prática, chafurdaremos eternamente na lama da nossa hipocrisia e na ignorância dos nossos preconceitos. Afinal, com bem afirma Sakamoto (2016:157), a ignorância é realmente um lugar quentinho.

E é sobre a estupidez humana, o prazer de xingar e destilar ódio por meio da Internet, entre outros assuntos, que trata o livro O que aprendi sendo xingado na Internet (2016), de Leonardo Sakamoto. O livro em questão foi publicado pela editora Leya e traz uma seleção de algumas das melhores crônicas escritas por Sakamoto, sendo algumas já publicadas em seu próprio blog. O livro tem cento e sessenta páginas e está organizado em doze partes, que se sucedem da seguinte forma: “Todos nós somos responsáveis” (p. 7-11), “O outro é um ilustre desconhecido” (p. 13- 26), “Somos educados a tomar partido” (p. 27-50), “Jornalistas não são jornalistas, leitores não são leitores” (p. 51-70), “Falta amor no mundo” (p. 71-88), “Falta interpretação de texto” (p. 89-104), “Falta Lexotan na água desse povo” (p. 105-116), “Boatos são eternos” (p.117-132), “Mais vale um tuíte atrasado do que um post mal apurado” (p. 133-146), “Odiar é fácil. Difícil é dialogar” (p. 141-146), “Por que devemos continuar resistindo” (p. 147-154) e “Epílogo” (p. 155- 158). O livro conta ainda com uma breve apresentação de Gregório Duvivier e abre com uma charge da Laerte.

Sakamoto procurou organizar o livro, reunindo sob títulos abrangentes, aquelas crônicas que, de alguma forma, mantivessem aproximações temáticas. Dessa forma, O que aprendi sendo xingado na Internet não tem como objetivo dar a palavra final sobre nenhum dos assuntos ali tratados, mas propor questionamentos e discussões acerca do atual clima de ódio que se destila nas redes sociais, a partir da situação sócio-política do Brasil, para que nós, leitores, não nos tornemos massa de manobra na rede.

A formação acadêmica e a experiência profissional de Leonardo Sakamoto permitem que ele discorra sobre os mais delicados assuntos, de forma bastante leve, como se exige de uma boa crônica. Não é, no entanto, a leveza do seu texto que o impede de meter o dedo na ferida da incompreensão, questionando, o tempo todo, a necessidade que sentem alguns em defender o indefensável, tentando empurrar goela abaixo dos incautos e desavisados uma visão de história e de política, que não condiz com a realidade da maioria, mas de uns poucos escolhidos. Através dos seus textos, o autor sempre apresenta mais de uma maneira de compreensão para um mesmo tema, desconsiderando completamente a possibilidade de defesa e manutenção de uma história única. Para tanto, um dos recursos mais eficazes observados na sua escrita é o uso da ironia, à qual recorre com bastante freqüência, usando-a na medida certa.

Leonardo Sakamoto
Os textos que compõem o livro em questão são resultados das preocupações do autor em relação às questões que dizem respeito à situação sócio-política do Brasil, assim como o comportamento dos internautas no que concerne às opiniões que emitem no ambiente virtual. Como há, na Internet, uma sensação de invisibilidade e, consequentemente, uma sensação de impunidade no que concerne ao que se diz nas redes sociais; as pessoas que tomam posicionamentos e mostram seus rostos, provando que existem na vida real e que pensam de maneira livre, acabam por se tornarem alvos fáceis para a imensa massa de agressores virtuais dispostos a impor seus dogmas, atacando aqueles que questionam ou, simplesmente, mostram que nada é absoluto.


Sakamoto é uma dessas figuras que carregam um alvo nas costas. E embora determinados xingamentos tenham deixado a Internet e o busquem pelas ruas, o autor não tem se deixado abater por questões tacanhas, defendo sempre o diálogo como forma de se chegar a um denominador comum. É claro que o fascismo que invade a web e bate na nossa porta não reconhece o outro e, consequentemente, ignora a importância de se dialogar. Por isso mesmo, toda e qualquer pessoa que passou, passe ou pretenda passar pelo menos perto de um computador tem a urgentíssima necessidade de se debruçar sobre os textos deste livro de Leonardo Sakamoto, como forma de apreender as maneiras mais básicas e elementares de sobreviver à Internet, o que também, sem dúvida alguma, o tornará uma pessoa melhor.

Leia também:

http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br