segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

O MANÍACO DO OLHO VERDE

Dalton Trevisan
Dalton Trevisan é, sem sombra de dúvida, o melhor contista do Brasil. De forma exemplar, o autor consegue fazer um belo uso da linguagem e, com mestria, obtém o equilíbrio entre o lírico e o trágico. Ao utilizar como fonte de trabalho o cotidiano recriado, Trevisan coloca-se entre os dois grandes pólos do conto brasileiro: Machado de Assis e Breno Acioli. São, no entanto, o poder poético e as inovações utilizadas pelo autor curitibano que o colocam como figura de destaque na literatura brasileira. Os desencontros, os amores desastrados, as súplicas, as mortes, as frustrações e a rara esperança que configuram a mísera condição humana são ingredientes de que o autor se utiliza para transformar João e Maria em cada homem e em cada mulher, assim como Curitiba, universo recriado do autor, num macrocosmo habitado por todos.
A Curitiba de Dalton Trevisan não está no mapa. Trata-se de uma cidade inventada que, assim como Macondo, criada por Gabriel Garcia Márquez em seu Cem anos de solidão (1967) tem as características de uma cidade real, mas que apenas existe como cenário para as histórias do autor.

Antes de atingir o prestígio de grande contista que conquistou, Trevisan publicara Serenata ao luar (1945) e Sete anos de pastor (1946), obras que o autor renega, e editara a famosa revista Joaquim (1946-1948), a qual se tornou porta-voz de uma geração de escritores e poetas nacionais. Entre os textos que publicava, havia ensaios assinados por Antonio Candido, Otto Maria Carpeaux e Mario de Andrade. Até então inédito, o poema “Caso do vestido”, de Carlos Drummond de Andrade surgiria primeiramente ali. Além disso, a revista ainda trazia traduções originais de autores como Proust, Gide, Joyce e Kafka. Havia também ilustrações de artistas como Heitor dos Prazeres e Di Cavalcanti, entre muitos outros. É com a publicação de Novelas nada exemplares (1959) que o autor surgirá definitivamente na cena literária do país, assumindo a posição de mestre brasileiro na arte do conto.

De toda a obra de Dalton Trevisan, a menina dos meus olhos é O vampiro de Curitiba, de 1994. Contudo, aqui, teceremos algumas notas não sobre as aventuras e desventuras do vampiro Nelsinho, mas sobre outro livro de Dalton Trevisan: O maníaco do olho verde, de 2008.

O maníaco do olho verde é composto de vinte e seis contos. Sem abandonar o estilo que o consagrou, Trevisan usa e abusa da linguagem elíptica que lhe é peculiar ao abordar os dramas mais íntimos do ser humano. Ao contista não interessa os bem nascidos, os belos; mas a escória, os excluídos, os marginalizados, tarados, loucos, drogados e prostituídos. Dessa forma, nos vinte e seis contos da obra em questão, têm-se os viciados em crack, os pedófilos, os traficantes, os agiotas e as putas (ah, as putas!). Ao passar tudo isso em revista, Trevisan traça uma completa análise de uma sociedade que se deteriora a cada novo dia. Uma sociedade que se mantém na base do dinheiro e do sexo, do sexo e do dinheiro. Não há, inferimos a partir dos textos, uma preocupação social com a degradação de valores éticos e morais. Tudo parece possível. Ao narrar acontecimentos fictícios, Trevisan acerta em cheio um soco na boca do estômago do leitor, como se reais fossem. Além dos temas já postos, a violência policial funciona como uma linha que une quase todos os personagens e ações. Convém ressaltar que a mão policial cai com muito mais força nas costas dos mais humildes, dos excluídos.

O último conto do livro é o mesmo que dá título à obra. Ao encerrar com esse conto, o autor de Cemitério de elefantes traça uma conexão desse conto com os vinte e cinco anteriores. E caso o leitor tenha feito julgamentos prévios do maníaco, é ele mesmo, o maníaco, quem vai terminar o texto dizendo: “Podem me condenar, babacas e bundões. O que eu faço? Tudo o que vocês gostariam. Eu sou um de vocês”.

Mais uma vez, Dalton Trevisan acerta o alvo. É a arte imitando a vida ou a vida imitando a arte? Seja como for, nos contos de Dalton Trevisan, a vida nada mais é do que o amor de um machão de terno azul com listinhas por uma fulana viciada, que talvez cobre cinco ou dez paus por um programa. Que coisa!

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

CURRAL DE PEDRAS


Imagine uma cidade no interior do Brasil, no coração do Nordeste, tomada de pedras por todos os lados. Imaginou? Agora, imagine essa mesma cidade ainda se equilibrando nos limites do atraso e do progresso. Sim, pois enquanto várias faculdades ali se instalam, movimentando a economia local e alterando comportamentos, o atraso ainda se faz presente na maneira arcaica de se fazer política. Mudam-se as moscas, mas a merda continua a mesma. Política(gem) essa, que nivela por baixo, visando o interesse de poucos em prejuízo do bem-estar da maioria. Maioria tal, conivente com essa forma imoral de dominação "curralesca", que tornou-se comum nas mais distantes e diferentes regiões do País.
Tome-se esse cenário e acrescente um narrador atento ao que lhe circunda; coloque três bons personagens, uma boa trama e tem-se Curral de Pedras (2009), primeiro romance de Jards Nobre, escritor natural de Quixadá, Ceará; autor de uma prosa universal.
O romance estreante de Jards Nobre, publicado pela editora ABC, reúne vários dos elementos comuns à estética Realista/Naturalista. Assim, caso o leitor desatento caia na "armadilha" do autor, poderá acreditar, de imediato, tratar-se apenas de mais uma história, que se desenvolverá a partir de um suposto triângulo amoroso, tão recorrente nos romances realistas. Contudo, e isso é muito bom, o autor não se limita a revisitar Madame Bovary, O Primo Basílio, Dom Casmurro, O Ateneu ou O Cortiço; mas vai além. Nobre costura a trama que envolve Nadja, Paulo e Tito, com os mais relevantes ingredientes constituintes das chamadas narrativas contemporâneas, mostrando-se um exímio contador de uma boa história, capaz de prender a atenção do leitor até o desfecho da narrativa. E essa é, ao meu ver, uma característica indispensável ao bom escritor.
Embora Nadja e Paulo nos remetam, de certa forma, a Bilinha e Alípio, de Aves de Arribação, de Antonio Sales; são outros os caminhos que o autor pretende explorar. Assim, a narrativa de Jards Nobre mostra-se eivada de aspectos comuns à narrativa contemporânea: o corpo como produto, a ausência de identidade, a morte. Só isso, no entanto, seria por demais elementar , uma vez que autores como João Gilberto Noll, Chico Buarque, Flávio Moreira da Costa e Sérgio Granja, entre inúmeros outros já o fizeram ( e ainda o fazem) aos borbotões. Mas então, o que pode haver de relevante no romance de Nobre? Numa tentativa de resposta, além da trama em si, diria ser a concatenação de elementos de diferente estéticas sem o ranço mais acentuado de uma ou de outra, cabendo ao leitor tal identificação. Falamos aqui, é claro, não do leitor comum, mas daquele leitor proficiente. Ao primeiro, apenas o prazer da leitura interessa.
Curral de Pedras, a Macondo de Jards Nobre, no coração do sertão, mostra, sem tirar nem pôr, o que de ruim, de bom e de detestável pode acontecer numa cidade que, como inúmeras outras, sofre por não permitir que seu povo alcance aceitáveis níveis de dignidade. Dignidade essa, que não brota dos imensos monólitos que a cercam ( no caso de Curral de Pedras), mas que nasce e se desenvolve na luta contínua pela emancipação humana.
E é assim que, ao longo da narrativa, tem-se uma visão distópica de como se dá a educação na cidade de Curral de Pedras. Pelos olhos dos professores Paulo e Fabíola, o leitor capta os descasos, os interesses e os desinteresses de uma sociedade, que ainda não aprendeu a importância e o valor da educação e da cultura e por isso, mas não só por isso, paga um preço alto, muito alto. A cidade, microcosmo pensado por Nobre, embora fictícia, poderia ser qualquer um dos milhares de municípios Brasil adentro, vítimas da ignorância, da incompetência e da ganância de alguns (de muitos, na verdade) políticos. Dessa forma, o título do romance é bastante oportuno por indicar a maneira como o povo é tratado: como gado.
Uma mulher bonita, um homem solitário e um adolescente perturbado servem como pano de fundo para a crítica mordaz que salta das páginas de Curral de Pedras, nítida desde o título, às relações líquidas, as perseguições políticas, os desejos (in)contidos, as desilusões.
Que Jards Nobre alcance o merecido sucesso, nesse curral de papel chamado Literatura.

sábado, 18 de janeiro de 2014

MAS AFINAL, O QUE OS PROFESSORES FAZEM?

     E eis que leio no site da Universidade Estadual do Ceará (www.uece.br), que até o ano de 2030, conforme informação divulgada pela UNESCO, no dia mundial do professor, 05 de outubro, serão necessários cinco milhões de professores no mundo todo. A urgente contratação desses profissionais tenta, entre outros objetivos, fazer com que milhões de crianças tenham acesso à educação básica. A falta de professores, continua o comunicado, é mais evidente no continente africano e em países árabes. E mesmo que tal meta seja alcançada, mesmo assim um número absurdo de crianças nunca terá acesso à educação. Segundo as Nações Unidas, dos 57 milhões de crianças que não frequentam a escola, metade são meninas.
      No que diz respeito aos professores, o comunicado das Nações Unidas afirma que “os professores são a solução para a crise da aprendizagem, mas muitos são mal treinados, mal apoiados e excluídos das questões sobre políticas educacionais e das decisões que os interessam e os afetam”. E eu, cá com meus botões e minha chávena de chá de hortelã, me pergunto por qual razão somente agora essas questões estão sendo postas na mesa. E a resposta é por demais “simples”. Para o enviado especial da ONU para a Educação Global, Gordon Brown, os países estão verificando que não serão bem sucedidos se não investirem na educação. Obviamente, você nem precisa assumir tão importante cargo para saber que isso é um fato. Se os governantes ouvissem seus povos, isso não teria chegado a esse patamar desesperador e que, certamente, entrará em colapso. Em países como o Brasil, por exemplo, todas as vezes que os professores se unem e marcham por melhores condições de salários e melhorias na educação, são espancados pela polícia, ridicularizados, humilhados  e ignorados pelos governantes. A impressão que se tem é que esses profissionais são um fardo para o Estado. Já passei dos quarenta e tenho visto isso na mídia brasileira desde que era um garoto. A preocupação das autoridades para com a educação limita-se a uma retórica que não encanta mais nem a mais estúpida das serpentes.
       E dando continuidade ao seu discurso sobre a descoberta da pólvora, o senhor Brown disse: “educação não é a única maneira de fortalecer as oportunidades pessoais. Não é a única maneira de quebrar o ciclo da pobreza. Mas é uma forma de as nações se tornarem mais prósperas”. E disse mais: “a menos que consigamos contratar mais professores, teremos gerações de pessoas desempregadas e que não serão empregáveis”. As paradoxais declarações do representante das Nações Unidas apontam para um discurso recheado de “mais do mesmo”, quando não aponta, por exemplo, quais seriam as outras maneiras de fortalecer as oportunidades pessoais, por exemplo, ou quando usa os verbos ter e ser, no tempo futuro, quando em países como o Brasil, por exemplo, já se observa uma imensa massa de jovens desempregados e não empregáveis. A violência e a barbárie cotidianas são resultados do recorrente descaso com a educação e do contínuo desgaste dos professores.
        Para que até o ano de 2030 nossas crianças e jovens possam contar com cinco milhões de professores, muita água ainda precisa correr debaixo da ponte. Isso se ainda houver água em 2030. Quem, tendo em vista as péssimas condições de trabalho, o ofensivo salário pago e o recorrente desrespeito pelo qual se passa, optará pelo magistério? 2030 já está quase batendo à porta do mundo e são irrisórias as propostas apresentadas, bem como as ações implementadas pelos governos em relação à educação. “Os professores são tão explorados e desrespeitados que qualquer pessoa que escolha essa profissão hoje deve ter sua inteligência questionada e, portanto, não poderia nem mesmo ser autorizada a ensinar”. Embora rude, o comentário anterior é de uma sobriedade e tanto, se considerarmos a situação dos professores mundo afora. Se para uns ele poderia ser destruidor, para o professor Taylor Mali, foi instigador. A partir do que ouviu, o professor Mali resolveu escrever um poema sobre o valor dos professores.
       O poema chama-se “o que os professores fazem” (www.taylormali.com). Sua história e várias outras são contadas no livro Um bom professor faz toda a diferença (2013), publicado no Brasil pela editora Sextante. O livro do professor Mali não é nenhuma obra de aprofundamento intelectual sobre educação, escola, professores e alunos. O professor Mali também não é nenhum Paulo Freire. E tudo isso, junto e misturado, talvez seja o que torna o livro do professor Mali bastante interessante. Seu livro, como já vem dito na capa, é uma defesa apaixonada do trabalho dos professores e os motivos pelos quais precisamos deles mais do que nunca.
       E em pleno século XXI, ainda existe gente que não sabe o que os professores fazem. Entre outras coisas, os professores fazem seus alunos imaginarem, questionarem e criticarem. Vejam como isso é perigoso em épocas de corrupção, autoritarismo e fome de poder! E se dito dessa maneira, ainda houver quem insista na pergunta “Mas afinal, o que é que os professores fazem?”. Recorro ao final do poema do professor Mali e respondo: “Sabem o que os professores fazem?”. “Os professores fazem a diferença! E você?”.

      E se aqueles 57 milhões de crianças não puderem nunca freqüentar uma escola é por que aos professores continuou-se a negar a oportunidade de fazer a diferença. E assim sendo, 2030 pode ser tarde demais.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

QUANDO O POVO FAZ SEUS PRÓPRIOS SANTOS

Em Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), filme de Glauber Rocha, há a seguinte fala: "Mais forte são os poderes do povo". Lembrei dessa frase ao ler o ensaio de Dellano Rios denominado O Povo Fez Sua Santa, trabalho vencedor do Prêmio Guilherme Studart, publicado em 2011 pela Secretaria de Cultura do Estado do Ceará. Na referida obra, o autor discorre sobre as maneiras encontradas pelo povo ao criar seus próprios objetos de devoção, incluindo seus próprios santos, independentemente das vontade da Igreja Católica. Essas eleições, são chamadas por Paul Zumthor de "canonizações espontâneas". Para o referido autor, trata-se de um fenômeno sociológico, segundo o qual indivíduos vivos,imaginários ou mortos passam a ser reconhecidos como santos, tornando-se os meios pelos quais seus devotos entram em contato direto com Deus. E é ai que o povo mostra que seus poderes são maiores e mais fortes do que ele mesmo pode supor. E ao falarmos desses assuntos, não há como não lembrarmos da região do Cariri, no Ceará, onde se tem um dos principais exemplos dessa forma de canonização: O Padre Cícero Romão Batista.

Mas nem só de Padre Cícero vive a hagiologia brasileira. E para provar isso, o pesquisador Dellano Rios viajou até a cidade de Aurora, localizada na microrregião do Cariri, 485 quilômetros  ao sul de Fortaleza, em busca de dados que o levassem a compreender as razões que fizeram com que Francisca Augusta da Silva, uma menina de 16 anos, morta pelo ex-noivo, se tornasse para o povo daquela cidade, uma mártir. No Ceará, como afirma Gilmar de Carvalho no prefácio à obra de Rios, outros santos também foram "canonizados" pelo povo. Entre tantos, cita o pesquisador: Mártir Isabel, em Guaraciaba do Norte, Francisca Carla, em Tianguá, e o soldado Hortênsio, em Viçosa do Ceará. No caso de Mártir Francisca, o que chamou a atenção de Dellano Rios, o que lhe chamou primeiramente a atenção foi o livro Paixão e Sangue de Mártir Francisca (2001), de Rozanne Quezado, ponto de partida para sua monografia de conclusão de curso na Universidade Federal do Ceará, denominada de Mártir Francisca de Aurora: memória, narrativa e tradição (2004). E assim sendo, no que concerne aos aportes teóricos, uma vez que a abordagem escolhida por Rios seja a da Semiótica da Cultura, seu texto necessariamente dialoga com a Sociologia, a História, a Literatura, a Etnografia, a Antropologia e a Semiologia; bem como vários outros campos de conhecimento; o que torna o texto do referido autor uma prazerosa peça ensaística, sem a limitação bibliográfica comum a esse tipo de texto.
                                                  
Todo o ensaio em questão, excetuando-se os aportes teóricos que lhe dão sustentação, trata do fato de que uma menina de 16 anos é esfaqueada e morta pelo seu ex-noivo no dia 09 de fevereiro de 1958, sendo eleita santa pelo povo da sua comunidade. Santos feitos assim, são definidos por Câmara Cascudo em seu ensaio O povo faz seu santo (2002), de "santos do povo". Para Câmara Cascudo (1898 - 1986), os santos do povo são definidos por dois aspectos. O primeiro, refere-se ao reconhecimento massivo do santo pelo povo. Já o segundo aspecto, por sua vez, diz respeito ao não reconhecimento deste santo pela Igreja Católica. Dessa forma, os dois aspectos apontados por Cascudo compreendem o caso da santa de Aurora. Embora o ensaio do antropólogo potiguar contemple alguns exemplos de santos feitos assim, não há nele nenhuma referência ao caso da menina-santa de Aurora.

O ensaio de Dellano Rios está dividido em três capítulos: No primeiro tem-se A Autoridade da Escrita; no segundo, O Sagrado e o Verbo; enquanto no terceiro tem-se O Campo Santo. Sobre o conteúdo dos capítulos do livro em análise, recorremos ao que diz o próprio Dellano Rios: "No primeiro capítulo, investigo a aparição e as funções desempenhadas pela escrita na tradição narrativa do culto. Na sequência, recorro à oralidade, às versões da história que são narradas pelos devotos da santa de Aurora. Na terceira e última parte do texto, a investigação se dá sobre as práticas da devoção, experiências que estão na base das narrações e que por elas são transformadas". Entre os estudiosos utilizados como embasamento teórico na produção do seu texto, é notória a presença de Paul Zumthor, principalmente da sua obra A Letra e a Voz (1999).

Assim, O Povo Fez Sua Santa (2011) de Dellano Rios, constitui leitura obrigatória para todos aqueles que apreciam um bom ensaio. E como estão em falta bons ensaístas!




terça-feira, 7 de janeiro de 2014

ESCRITORES CEARENSES: MÚLTIPLOS OLHARES


É bastante comum vermos pesquisadores se debruçando sobre esse ou aquele autor alienígena, em detrimento de autores formadores da sua própria cultura. Nada contra, mas meu coração dá saltos quando vejo jovens pesquisadores, indo buscar na sua terra objetos de estudo muitas vezes esquecidos, relegados a um canto de memória de antigos mestres, exilados em prateleiras não mais visitadas das nossas bibliotecas, quiça desconhecidos.

E foi com grande satisfação que recebi o lançamento do livro Escritores Cearenses: Múltiplos Olhares (2013), organizado pelas escritoras Fernanda Maria Diniz da Silva e Jailene de Araújo Menezes. Minha satisfação talvez se justifique por defender aquela velha máxima de Tolstoi, quando diz: "Fale da tua aldeia e falarás do mundo". Isso, no entanto, quero deixar claro, não nos invalida de pesquisarmos autores outros. Eu mesmo não abro mão das minhas pesquisas sobre Samuel Beckett, Ernest Hemingway ou Wole Soyinka, entre outros. Não posso negar, porém, que meu coração parece bater mais forte, quando pesquiso sobre a poesia de Jáder de Carvalho ou a crônica de Margarida Saboia de Carvalho, por exemplo.


O livro, lançado durante o I Simpósio de Literatura Cearense, traz sete artigos, entre prosa e poesia, organizados da seguinte forma: Luzia-Homem: Aspectos regionais, naturalistas e românticos, da autoria de Fernanda Barbosa e Silva e Francisca Erik Larisse Nogueira Lima. O artigo de Gildênia Moura de Araújo Almeida, discorre sobre a obra A Divorciada, de Francisca Clotilde. Patativa do Assaré - o poeta popular é assinado por Avanúzia Ferreira Matias, enquanto Fernângela Diniz da Silva assumiu a responsabilidade de escrever sobre a literatura infanto-juvenil da escritora Rachel de Queiroz, enfatizando a obra O menino mágico. No que diz respeito à poesia, Marilde Alves da Silva dedicou seu artigo ao estudo da poesia do escritor Moreira Campos, tomando como seu objeto de análise o livro Momentos, de 1976. Jailene de Araújo Menezes, por sua vez, mergulhou fundo na poesia de Linhares Filho, assinando o artigo  A representação mítico-erótica do mar, na poética de Linhares filho. A poesia de Roberto Pontes surge na obra em questão com o artigo denominado A presença de eros em Memória Corporal, da autoria de Fernanda Maria Diniz da Silva.

Na apresentação da obra, as autoras deixam bastante claro que o objetivo de Escritores cearenses: múltiplos olhares "é valorizar a produção literária dos nossos renomados escritores e fomentar os estudos sobre a produção literária de autoria de cearenses, contribuindo, assim, com o estímulo ao conhecimento e à pesquisa dessa rica e variada produção bibliográfica (...)".

Os múltiplos olhares das autoras sobre os múltiplos autores escolhidos apontam para a diversidade de obras e autores à espera de trabalhos de fôlego, que estejam dispostos a explorar os meandros da literatura produzida na terra de Alencar. Nesse sentido, a obra que as pesquisadoras agora entregam ao público é, ao mesmo tempo nossa, da nossa aldeia, mas também do mundo, essa aldeia global, como bem pontificou Marshall McLuhan. 



segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

NOTÍCIAS DE BORDO, DE LINHARES FILHO

José Linhares Filho
Linhares Filho nasceu em Lavras da Mangabeira, CE, no dia 28 de fevereiro de 1939. Foi professor da Universidade Federal do Ceará por vários anos. Foi membro do grupo SIN de literatura, da geração 60, no Ceará, e é autor de uma relevante obra literária e crítica, sendo um dos mais importantes estudiosos das obras de Fernando Pessoa, Miguel Torga e Carlos Drummond de Andrade. Em 2006, lançou o livro Notícias de Bordo: poemas selecionados, agora parte da coleção Literatura no Vestibular, da Universidade Federal do Ceará. E é sobre essa obra, que passamos a tecer algumas considerações.
O livro Notícias de Bordo é composto de 61 poemas selecionados pelo autor. Do seu primeiro livro, Sumos do Tempo (1968), constam quatro poemas. De Voz das Coisas (1979), o autor selecionou treze poemas. Do livro de 1983, Frutos da Noite de Trégua,sete. Do Tempo de Colheita (1987), dez, de Andanças e Marinhagens (1993), treze. De Rebuscas e Reencontros (1996), constam seis. De Cantos de Fuga e Ancoragem (2006), foram selecionados oito poemas.
No que diz respeito aos aspectos formais dos poemas de Notícias de Bordo, percebe-se a utilização de versos livres, octossílabos, decassílabos, redondilhas e alexandrinos, demonstrando a capacidade do poeta de navegar pelos mais variados caminhos da criação poética. Em Linhares Filho, forma e conteúdo coexistem. A erudição e o cuidado com a palavra poética aparecem como características relevantes na obra de um poeta que, em plena atividade, contabiliza quarenta anos de poesia.
Mas afinal, do que tratam os poemas de Notícias de Bordo?
A literatura universal trata basicamente de três grandes temas: amor, vida e morte. Como cada autor aborda esses três temas é o que pode torná-lo repetitivo, diferente ou original. No caso de Linhares Filho, podemos inicialmente afirmar tratar-se um poeta atento a pelo menos três questões fundamentais, referenciadas em sua obra. São eles: os dramas do homem contemporâneo, os acontecimentos ligados à vida literária e, por fim, os questionamentos e indagações do ser humano, com destaque àqueles relacionados à inexorabilidade da morte. Trata-se de uma poesia que contempla os aspectos social, ético, filosófico, estético e religioso.

          Assim, observamos a mãe, o pai, a mulher, o erotismo, o telúrico, a morte, o mar, as homenagens, a religiosidade e o homem; como temáticas recorrentes na obra em questão.E dessa forma, sem medo de errar, apontamos a obra poética de Linhares Filho como sendo de expressiva relevância para a literatura brasileira, por tratar-se de uma poesia de alto nível, calcada na elegância da mais fina criação e na austeridade formal comuns àqueles comprometidos com a grandeza do fazer poético.


sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

O QUE LER EM 2014


Passadas as festas de final de ano, percebemos que algumas promessas feitas em 2012 não foram cumpridas em 2013. Assim sendo, resta-nos a esperança de cumpri-las no ano que se inicia. Entre tantas promessas deixadas para o ano de 2014, estão as leituras daqueles livros que, por um motivo ou outro, abandonamos pelo caminho. Mas é sempre tempo de retomá-las, e a elas, acrescentarmos outras. Destarte, tomamos a liberdade de sugerir algumas leituras que fizemos (algumas ainda estamos fazendo), para o seu deleite durante o ano que se inicia. Boa leitura!

BIOGRAFIA:

1. O Velho Graça, de Dênis de Moraes. Boitempo editorial.
2. Clarice, de Benjamim Moser. Cosacnaify.
3. Tolstoi: a biografia, de Rosamund Bartlett. Biblioteca Azul.
4. Amarga fama: uma biografia de Syvia Plath, de Anne Stevenson. Rocco.
5. Frida: a biografia, de Hayden Herrera. Editora Globo.
6. A vida de Lima Barreto, de Francisco de Assis Barbosa. José Olympio Editora.

HISTÓRIA/LINGUÍSTICA/CULTURA:

1. Documentos para a história colonial, especialmente a indígena no Ceará (1960-1825), de Francisco Pinheiro. Fundação Ana Lima.
2. Fraseologias jurídicas: estudo filológico e linguístico do período colonial, de Expedito Eloísio Ximenes. Editora Appris.
3. Palavras-chave, de Raymond Williams. Boitempo editorial.
4. A política e as letras, de Raymond Williams. Editora Unesp.
5. A cultura no mundo líquido moderno, de Zygmunt Bauman. Editora Zahar.
6. O que é o contemporâneo? e outros ensaios, de Giorgio Agamben. Argos editora da Unochapecó. 

CORRESPONDÊNCIA:

1. Câmara Cascudo e Mario de Andrade: cartas 1924-1944, organizado por Marcos Antonio de Moraes. Editora Globo.
2. Com Roland Barthes, de Leyla Perrone-Moisés. WMF Martins Fontes.
3. Cartas da biblioteca Guita e José Mindlin. Editora Terceiro Nome.
4. Correspondência Mário de Andrade & Tarsila do Amaral, organizado por Aracy Amaral. Edusp.
5. Mário de Andrade e Sérgio Buarque de Holanda: correspondência, organizado por Pedro Meira Monteiro. Edusp.
6.  Cartas perto do coração; Fernando Sabino e Clarice Lispector. editora Record.

POESIA:

1. Obra poética integral de Cesário Verde (1855-86), organizado por Ricardo Daunt. Landy Editora.
2. Delírio da solidão, de Jáder de Carvalho. Edições UFC.
3. Poesias de Barbosa de Freitas, organizado por Sânzio de Azevedo. Premius Editora.
4. Ariel, de Sylvia Plath.Verus Editora.
5. Poemas Escolhidos de Elizabeth Bishop, seleção de Paulo Henriques Britto.
6. Interrupciones 1, de Juan Gelman. Biblioteca Breve.

CONTO/CRÔNICA:

1. Porta de academia, Moreira Campos. Edições UFC.
2. Numa pensão alemã, Katherine Mansfield. Editora Revan.
3. A alma encantadora das ruas, João do Rio. Editora Crisálida.
4. Metropolis, organizado por Mariana Marques. La Barca Editora.
5. O nu despido e outros contos, de Bernard Malamud. Edições Bloch.
6. Os Acangapebas, de Raymundo Netto. Editora Fundo de Quintal.

ROMANCE:

1. Pássaros sem canção, de Jards Nobre. Editora Corsário.
2. O grande Gatsby, de F. Scott Fitzgerald. Editora Record.
3. A idade do ferro, de J.M.Coetzee. Editora Siciliano.
4. O falecido mundo burguês, de Nadine Gordimer. Art Ed.
5. O velho e o mar, de Ernest Hemingway. Círculo do Livro.
6. Pais e Filhos, de Ivan Turgueniev. Cosacnaif.

SOBRE LIVROS, LEITORES E LEITURA:

1. Uma história da leitura, Alberto Manguel. Companhia das Letras.
2. O livro no Brasil - Sua história, de Laurence Hallewell. Edusp.
3. O prazer de ler, de Heloísa Seixas. Casa da Palavra.
4. O prazer do texto, de Roland Barthes. Perspectiva.
5. Por que ler os clássicos, de Italo Calvino. Companhia das Letras.
6. Como e por que ler os clássicos desde cedo, de Ana Maria Machado. Objetiva.
7. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual, de Jacques Rancière. Autêntica.
8. A arte de ler, de Émile Faguet. Casa da Palavra.
9. O leitor fingido, de Flávio Carneiro. Rocco.
10. A leitura, de Vincent Jouve. Editora Unesp.
11. Mapa do mundo: crônicas sobre leitura, de Marta Morais da Costa. Editora Leitura.
12. O sentido de um fim, de Julian Barnes. Rocco.
13. Tempo e narrativa, de Paul Ricoeur. WMF Martins Fontes.
14. Como funciona a ficção, de James Wood. Cosacnaif.
15. Como e por que ler, de Harold Bloom. Objetiva.
16. Como um romance, de Daniel Pennac. Rocco. L&PM Pocket.
17. O prazer de ler os clássicos, de Michael Dirda. WMF Martins Fontes.
18. O homem que amava muito os livros, de Allison H. Bartlett. Seoman.






MARGARIDA SABOIA DE CARVALHO


Muitos são os escritores nascidos no Ceará. Dentre esses, alguns se tornam referências para os estudos acadêmicos, outros se tornam nomes de ruas e avenidas e outros, nem uma coisa, nem outra. O certo é que  alguns são lembrados, outros esquecidos. Se para Antonio Sales a cidade criou uma avenida com seu nome, o mesmo não podemos dizer de Adolfo Caminha, que ganhou uma rua (ou seria um beco?) por onde ninguém caminha. Seria uma punição ao homem que ousou, em tempos idos, desafiar o provincianismo da sociedade fortalezense? Esperamos que não. Mas se o for, Caminha não está, temos certeza, dando a mínima para tão grande idiotice. Ao contrário, apenas vê confirmada sua opinião acerca da cidade e do seu povo.

Jáder de Carvalho é outro homem que jamais se curvou aos desmandos dos "graúdos" da sua cidade. Em troca, no entanto, teve uma vida de perseguições, tentativas de descrédito e até atentados. Nada, contudo, o impediu de ser um dos maiores poetas e jornalistas da sua época.Mas Jáder talvez não tivesse sido tudo o que foi, tudo o que representa se não tivesse tido ao seu lado, seus filhos e sua esposa, na luta diária contra a intolerância, a opressão e a covardia dos poderosos. A esposa de Jáder de Carvalho, Margarida Saboia de Carvalho, por sua vez, não tomou para si a função da dona de casa, esposa do grande escritor. Ao contrário, assumiu a função de sujeito da sua própria história, conquistando seu próprio espaço como jornalista e escritora numa sociedade marcadamente patriarcalista. E assim sendo, Margarida Saboia de Carvalho tornou-se uma das maiores cronistas do jornalismo cearense. Além de crônicas, a referida autora também escreveu contos, publicando um livro de contos denominado A Vida em Contos (1964). Conforme afirma Sânzio de Azevedo, os contos de Margarida Saboia de Carvalho se tingem frequentemente de cores algo pessimistas, com o que chegamos a pensar num Neo-Naturalismo, atento aos problemas sócio-patológicos de uma humanidade infeliz. Ela mesma, falando de suas personagens, confessou: "Não lhes inventei o destino, apenas narrei".

Ainda conforme Sânzio de Azevedo, Margarida Saboia de Carvalho militou ativamente na imprensa, quer escrevendo crônicas, quer assinando artigos sobre política, fosse no Diário do Povo, quer na Tribuna do Ceará. Após a morte da autora, no ano de 1975, uma coletânea das sua melhores crônicas foi organizada pelo prof. Sânzio de Azevedo, devidamente publicada no ano de 1976. São cem crônicas, abordando desde os temas mais pessimistas e pesados da nossa existência até as temáticas mais banais do nosso cotidiano. Contudo, ainda não há um consenso sobre a obra da autora. Para alguns, tudo o que há publicado até agora é o livro Crônicas (1976) e A Vida em Contos (1964). Conforme o Portal de História do Ceará (http://www.ceara.pro.br/cearenses/listapornomedetalhe.php?pid=32399), ela também teria publicado Entre Dedos, Santos do Céu - Santos da Terra e Imperfeição.

 A verdade é que os estudos acerca da literatura de Margarida Saboia de Carvalho esbarram basicamente na falta (ou na incoerência ) de informações sobre a autora e sua obra. No que diz respeito à crônica da autora, em texto que acompanha seu conto Amanhã, às cinco horas, publicado em Uma Antologia do Conto Cearense (1965), pela Imprensa Universitária, com estudo de Braga Montenegro, diz-se que no ano de 1964 a autora teria publicado seu primeiro livro de crônicas, intitulado O Coração do Tempo. A questão é que “ninguém sabe, ninguém viu” esse livro.

Alguns críticos desconhecem totalmente sua existência, enquanto outros só ouviram falar, afirmando inclusive que o nome não seria O Coração do Tempo, mas Coração do Tempo ou Coroação do Tempo. Assim sendo, o que existe e que ainda é possível de se encontrar em sebos virtuais e bibliotecas universitárias são os já mencionados A Vida em Contos, de 1964, e Crônicas, de 1976. Embora seja quantitativamente pouco, qualitativamente é muito para se iniciar estudos sobre a obra de tão grande autora.