segunda-feira, 15 de agosto de 2016

SONO, DE HARUKI MURAKAMI

Diferentemente de Gregor Samsa, que acorda de sonhos intranquilos, a personagem do conto Sono (2015), de Haruki Murakami, vive seus sonhos intranquilos devidamente acordada, uma vez que há dias não consegue dormir. E o conto se inicia com a narradora dizendo: "É o décimo sétimo dia em que não consigo dormir" (p.5). 

Sono, Nemuri, no original japonês, é um conto longo, de autoria do celebrado autor japonês Haruki Murakami, publicado no Brasil no ano de 2015, pela editora Objetiva, sob o selo da Alfaguara, com tradução de Lica Hashimoto e ilustrações de Kate Menschik. Com cento e dezesseis páginas, por pouco o conto não descamba para uma novela. Mas Murakami sabe muito bem o que faz, e assim mantém sua narrativa curta sob  controle, não permitindo que ela se alongue para além das dimensões e objetividades requeridas na construção de um conto.

Casada com um homem de rosto "esquisito", mãe de um garotinho, proprietária de um Honda City usado e dedicada a esporádicas braçadas na piscina do clube. É assim que o leitor é apresentado à personagem principal do conto Sono.Não há nada de errado com a personagem, a não ser o fato de não conseguir dormir. Diz ela: "Meu marido e meu filho nem sequer desconfiam que estou há dezessete dias sem dormir. Eu também não lhes disse nada" (p.12). Embora o leitor seja levado a crer que o problema da personagem seja a insônia; assim como o rosto do seu marido, a situação da personagem é tanto esquisita, quanto inqualificável. 

A leitura do conto de Murakami acaba por nos empurrar em direção à outra narrativa curta. Nesse caso, Bliss, da neozelandesa Katherine Mansfield (1888 - 1923), o que nos faz observar alguns pontos de aproximação entre ambas. Assim sendo, vejamos: A personagem de Murakami não tem nome, mas podemos ver que guarda inúmeras semelhanças e aproximações com a Bertha Young, do conto de Mansfield. Bertha tem marido e filho e, tal qual a personagem do conto em questão, parece viver num universo paralelo, indo e vindo de uma dimensão à outra. Certamente que tais similitudes não ocorrem por acaso e, muitas vezes, tem-se a impressão de que o conto de Murakami é uma narrativa dentro de outra narrativa, tendo uma personagem sem nome, "brincando" de ser Bertha Young. As semelhanças não param por aí, havendo outras pistas deixadas pelo autor ao longo do  texto. Talvez não seja à toa que a personagem de Sono tenha cursado letras - inglês na faculdade, apresentando uma monografia de conclusão de curso sobre Katherine Mansfield (p.48). 

Bliss se conclui com Bertha Young parada, em estado de contemplação, observando uma pereira em flor. Em Murakami, a personagem diz: "Quando dei por mim, eu observava uma árvore através da janela" (p.56). Mas em Sono, isso não é o fim, mas uma indicação de um rápido estado de fuga dentro de outros estados de fuga e sonolência vivenciados pela personagem. Diz ela: "Esse estado de indefinida sonolência persistia o dia todo. Minha mente estava enevoada. Era incapaz de discernir corretamente a distância, o peso e a textura dos objetos. A sensação era de que sem avisar a minha consciência se dissociava do corpo. O mundo ondulava isento de sons" (p.7). De um momento para o outro, no entanto, a personagem não consegue mais dormir e, assim, sua vida assume uma outra dinâmica, um outro sentido.

Nas noites insones, enquanto todos dormem, a personagem descobre o prazer de ler Anna Karenina (1817), acompanhada de generosas doses de conhaque. "Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira"; dizem as primeiras linhas do romance de Tolstoi (1828 - 1910). Mas por qual razão essas palavras soaram tão forte aos ouvidos da narradora? Teria ela pensado no seu marido e no seu filho como exemplos de uma família (in)feliz? E o que dizer da semelhança de sua família com a de Bertha Young? Anna Karenina seguirá com a narradora por noites (e dias) a fio numa relação quase simbiôntica até o surpreendente desfecho da narrativa. 

Sono (2015), assim como Norwegian Wood (2008) e as demais obras de Murakami são como "pequenas" peças de um  imenso e respeitável work in progress literário capaz de abarcar as mais variadas temáticas, compondo um amplo leque de possíveis leituras e interpretações a partir da abertura proposta por suas narrativas, sejam elas longas ou curtas, as quais se mostram sempre em consonância com os mais profundos questionamentos do ser humano acerca da vida e da morte ou "apenas" das banalidades insólitas do cotidiano, a partir do ponto de vista de uma personagem que não consegue dormir.

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