O
xadrez é um jogo que simula o conflito entre dois exércitos; cada qual
representado por dezesseis peças que se movimentam sobre um tabuleiro de
sessenta e quatro casas de duas cores alternadas. O enxadrista é, por sua vez,
o jogador de xadrez.
Francisco Carvalho |
Inúmeras semelhanças aproximam o xadrezista do poeta. Se o primeiro pode levar horas e horas até se decidir pela jogada ideal, o segundo também o faz na busca pela palavra perfeita. Lutar com palavras, diz Drummond, é a luta mais vã. E assim, o lutador/poeta luta mal rompe cada manhã. E, “longe do estéril turbilhão da rua”, o poeta escreve. “No aconchego do claustro, na paciência e no sossego”, “trabalha, e teima, e lima, e sofre, e sua”, como nos diz Bilac.
Certa vez perguntei ao poeta Francisco Carvalho como andava sua produção poética. E ele me respondeu: “continuo reescrevendo os mesmos poemas”. O que o poeta diz pode ser compreendido como a constante necessidade que todo grande poeta tem de, infinitamente, burilar sua poesia. Em um seminário, Rachel de Queiroz disse à platéia que ao acabar de escrever um livro e revisá-lo uma vez, não queria mais saber dele. A autora de O Memorial de Maria Moura sabia que se a obra fosse revisada outras vezes, já não seria aquela, mas outra.
Claros e escuros, os quadrados do tabuleiro do xadrez nos remetem ao claro enigma da poesia. Mulher experiente, a poesia não se entrega a qualquer um. É preciso saber tocá-la, amá-la, até convencê-la à completa entrega. Tarefa das mais delicadas, pois de início ela rejeitará, evitará e se esquivará até não mais resistir aos assédios do poeta. A conquista da palavra poética, no entanto, não se dá de forma definitiva. Ao enxadrista da palavra caberá a árdua missão de conquistar tal dama a cada novo dia, como se fosse a primeira vez. Assim, um grande poeta jamais deita seu rei. Ao contrário, reelabora estratégias e ousa novas jogadas para, no leito da poesia-mulher, recriar mundos, preencher solidões e reinventar vidas.
E é a maestria dos grandes poetas, que identificamos em Mortos não jogam xadrez e Haikalantos, obras de Francisco Carvalho, publicadas em 2008. Haikalantos é um neologismo que contempla a junção das palavras haicai (forma de poesia japonesa surgida no século XVI, composta de três versos, com cinco, sete e cinco sílabas) e acalanto ( cantiga de ninar): “A vida é um teorema/ o sonho começa e acaba/ nas entranhas do poema” e “A vida é um fardo/ para o bêbado/ ou para o bardo” e ainda: “Múmias de borboletas/ embalsamadas alçam vôo/ dentro das gavetas”.
Dividido em quatro partes, Mortos não jogam xadrez traz setenta e nove poemas, dedicados à memória de Blanchard Girão, Eduardo Campos, Gerardo Mello Mourão, João Clímaco Bezerra e Manoel de Oliveira Carvalho. Há, não se pode negar, um tom melancólico em quase todos os poemas. Embora o autor discorra acerca do amor, da memória, dos mitos, da realidade e da metapoesia; observa-se um maior destaque à Indesejada das gentes, Ela, a Moça Caetana, a Morte.
Ao dedicar o livro ao seu irmão e queridos amigos mortos, o poeta afirma: “A esses mortos recentes, uma palavra de saudade, nesta viagem sem volta à casa de areia da eternidade”. E assim, Ela passeia por vários poemas em Mortos não jogam xadrez, fazendo lembrar as palavras de Moreira Campos: “Antiquíssima, atual e eterna, com sua cara de máscara. Moldada em gesso? A consultar no pulso um relógio invisível”. Mas, conforme Ibsen, não se pode morrer na metade do quinto ato. “O amor é moeda falsa/ não vale o pulo de um gato/ mortos não jogam xadrez/ no meio do quinto ato”.
Em “Poema de aniversário”, o eu-lírico diz: “Estou numa faixa etária em que as pessoas costumam morrer” e “Aos oitenta anos não existem razões para uma pessoa ser otimista”. Mas afinal, o que é a morte? A morte, responde o poeta: “... é a esquina de uma rua chamada eternidade/ o leito seco de um rio que deságua nos túneis e embocaduras do mar”.
Exímio enxadrista na arte da palavra, Francisco Carvalho sabe muito bem como tratar do amor, da vida e da morte. Mas do que valem as palavras de um poeta no caótico mundo do “tudo pode”? Valem para cantar o amor ao ser amado. Valem para denunciar o terror “por mais que os versos sangrem”. Servem para “todas as filosofias que nos apunhalam pelas costas”. As palavras de um poeta servem para nos lembrar de que “sob o signo das eras, a vida é só uma para homens e feras”. E assim sendo, a poesia de Francisco Carvalho se mantém cada vez mais atual, mais viva e apurada.