O presidente dos Estados
Unidos é morto a tiros. O Congresso é metralhado. Seria obra de fanáticos
islâmicos? O exército declara estado de emergência. A Constituição é suspensa.
Esse é o mote que desencadeia toda a narrativa que nos é apresentada por Margaret
Atwood, na obra The handmaid’s tale,
publicada no ano de 1985. O referido trabalho foi traduzido para o português
brasileiro, como O conto da aia, por
Ana Deiró, e publicado pela editora Rocco. Falamos aqui da edição de 2017. A
obra é composta de quinze partes, contendo ao todo quarenta e seis capítulos,
acrescida de uma última parte denominada de “Notas históricas”.
A narradora de O conto da aia é Offred, uma das servas
da República de Gilead, antigamente conhecida como Estados Unidos da América. A
palavra “Gilead” é mencionada inúmeras vezes na Bíblia, significando, por
exemplo, “Monte do testemunho” (Gênesis
31:21). Trata-se de uma região montanhosa no leste da Jordânia. É também conhecida como
“A terra de Gilead” (Números 32:1) ou apenas "Gilead" (Salmos
60:7; Gênesis 37:25). Nos Estados Unidos, é uma cidade no
condado de Oxford, no Maine.
A referência religiosa se faz necessária, tendo em vista que a antiga
democracia norte-americana agora deu lugar a um Estado teocrático, no qual as
mulheres não possuem outra função a não ser procriar. Na República de Gilead,
as mulheres não podem ler, escrever ou amar. Qualquer mínimo desvio de conduta
pode ser punido com a morte. Os preceitos religiosos sobre os quais se pauta
Gilead são aqueles do velho testamento. Às aias é permitido rezar e agradecer a
Deus por não terem tido um destino pior. As aias não são sujeitos, mas objetos
a mercê dos desejos e interesses do comandante, a quem devem servir cegamente.
Sua principal função, como mulheres férteis, é manter relações sexuais com os
comandantes e prover-lhes filhos. Caso não consigam, serão consideradas “Não
mulheres” e, consequentemente, banidas para para as colônias de trabalhos
forçados, juntamente com as homossexuais, as adúlteras, viúvas e feministas.
Como dito, Offred é um dos pertences da casa do comandante Fred. Offred
pertence a Fred (of Fred = de Fred ). Ao contrário dos homens, das aias não se
sabe os nomes. Assim, na narrativa de Atwood, vemos os direitos das mulheres,
conquistados a duras penas, serem simplesmente banidos, quando um grupo de
religiosos extremistas assume o poder no que agora é conhecido como República
de Gilead, uma sociedade teocrática fundada nos valores tradicionais e na
dominação das mulheres pelos homens.
Embora Margaret Atwood prefira classificar sua literatura como “ficção
especulativa”, O conto da aia é, na
verdade, uma narrativa distópica (distopia como oposto de utopia. Utopia no
sentido elaborado por Thomas More e distopia no sentido defendido por John Stuart
Mill), como muitas daquelas publicadas na década de quarenta. Entre tantas, A revolução dos bichos (1945) e 1984,
publicado em 1949 por George Orwell (1903-1950). Esse tipo de romance acabou
por ficar limitado à década de quarenta, tendo renascido, de forma mais
efetiva, após o atentado de onze de setembro. Um dos grandes exemplos de
romance distópico desse período é A
Estrada (2006), de Cormac McCarthy, no qual o autor situa sua narrativa em
um cenário pós-apocalíptico.
Margaret Atwood |
O diferencial que é trazido por Margaret Atwood em O conto da aia é a
apresentação da mulher como figura central da narrativa, apresentando-a como um
ser humano que tem sido explorado e oprimido ao longo de toda a história da
humanidade, haja vista a figura da aia/serva perpassar a história das mais
variadas culturas/sociedades que precederam a Modernidade. Um outro aspecto que também
merece ser mencionado é a capacidade que tem o ser humano de oprimir seu
semelhante sempre que isso lhe proporcione alguma forma de ganho. Na narrativa em
questão, as aias são oprimidas e coagidas por mulheres ( no caso, as tias) que,
teoricamente, deveriam estar unidas em defesa de todas. E aí lembramos Orwell,
quando o narrador de A revolução dos
bichos em dado momento diz: “alguns animais são iguais, mas uns são mais
iguais que outros”. O romance de Atwood ganhou enorme destaque na atualidade,
quando da eleição de Donald Trump, como presidente dos Estados Unidos da
América, se declarando contra as minorias, misógino, autoritário, em constante
flerte com atitudes antidemocráticas e manifestações fascistóides. Para alguns,
a República de Gilead pode saltar das páginas de Atwood e se concretizar bem no
coração da América a qualquer momento. Exagero? Sabe-se lá.
O que podemos firmar é que O
conto da aia tornou-se uma das mais relevantes obras a retratar tão bem uma
sociedade totalitária, sendo, além disso, uma das raras narrativas distópicas a deitar
olhos sobre as relações entre gênero e política. As questões levantadas por
Atwood estão longe de se manterem no campo da ficção. Sua leitura e seu
necessário debate coloca a literatura da autora canadense no contexto do que melhor tem sido produzido
nesse começo de século XXI.
Diante de uma obra de ficção que é praticamente uma reprodução de uma
sociedade real, um pedido passou a ser recorrente nas
manifestações pró-democracia e anti-Trump: “Façam
com que Margaret Atwood volte a ser ficção”!
É preciso manter os olhos bem abertos, pois Gilead pode não estar tão longe quanto se pensa.
Assista:
A Decadência de uma espécie (filme, 1990): https://www.youtube.com/watch?v=SWQ4xnyLy1U
The Handmaid's Tale (série): https://www.hulu.com/the-handmaids-tale
https://brasil.elpais.com/brasil/2017/11/21/eps/1511282293_560656.html
http://www.suplementopernambuco.com.br/edi%C3%A7%C3%B5es-anteriores/77-capa/2002-margaret-atwood-de-quanto-o-real-supera-a-fic%C3%A7%C3%A3o.html
https://www.youtube.com/watch?time_continue=27&v=PPPxR3PcXkQ