terça-feira, 8 de outubro de 2019

Carlos de Assumpção: Protesto, um filme de Alberto Pucheu


Alberto Pucheu
26 de setembro de 2019

Pesquisando para compor, a convite de Daysi Bregantini, a revista CULT Antologia Poética, no dia 2 de junho, cheguei, pelo Youtube, ao poema “Protesto”, de Carlos de Assumpção, falado por ele mesmo em gravação caseira. Fiquei inteiramente impactado por aquele poema grandioso lido daquela forma igualmente grandiosa por aquele poeta, que eu desconhecia completamente. Na mesma hora, incluí-o na revista, postei o link – para poder divulgá-lo – e comecei a procurar seus livros, tarefa das mais árduas.
Com ajuda de Marta Resende, acabei por encontrar um deles; depois, vieram os outros. Minha surpresa se deu ainda pelo fato de inúmeros poetas, professores e críticos com quem me relaciono tampouco o conhecerem. Depois, descobri que ele e seu poema “Protesto” eram conhecidos, sobretudo, pelas pessoas mais velhas participantes do movimento negro e por alguns poetas negros subsequentes. Quem era aquele poeta, de 92 anos, negro, desconhecido por mim e pela grande maioria das pessoas, mesmo das que lidam diretamente com poesia? Consegui contatá-lo e, no dia 19 de julho, eu e minha companheira, a poeta Danielle Magalhães, estávamos na casa dele. Filmamos nossas conversas com esse imenso poeta por três dias, para fazer o que viria a ser “Carlos de Assumpção: Protesto”, que, com o apoio da mesma revista CULT, disponibilizamos agora para ser visto. De volta da viagem à Franca até dia 6 de agosto, editei incessantemente o filme.
Por generosidade do cineasta e produtor de cinema Cavi Borges, fomos convidados por ele a passar duas sessões do filme, no dia 30 de agosto, em uma pequena sala do Estação Net Botafogo. No dia 13 de agosto, com alguma sorte, por indicação de Eucanaã Ferraz, Marco Rodrigo Miranda Almeida, jornalista da Ilustríssima, da Folha de S.Paulo, me procurou para que eu escrevesse sobre Manoel de Barros. Em um congresso em Aracaju, eu não tinha como atender a solicitação, mas contrapropus um texto sobre Carlos de Assumpção, a quem vinha me dedicando e tinha o firme propósito em torná-lo conhecido por um público maior, que foi logo aceita. Marco ainda enviou Ricardo Benichio para fotografar o poeta, que tirou fotografias lindíssimas dele. A repercussão do texto na Folha foi muito maior do que eu, ao partir para fazer o filme com ele poucos meses antes, poderia sonhar. No dia seguinte à publicação da matéria, uma grande editora me ligou, querendo publicá-lo em março de 2020, e o contrato com ele está em vias de ser assinado.
Voltamos à Franca para passar o filme para ele, seus amigos e admiradores nos dias 14 e 15 de setembro, em sessões muito comoventes. No domingo, dia 15, saiu no jornal da cidade, Comércio, uma matéria intitulada “Carlos de Assumpção, o filme”. No momento, em uma de minhas turmas de Teoria Literária na UFRJ, venho estudando, com os alunos, a poesia de Carlos de Assumpção. A convite de alguns professores, o filme tem sido passado algumas vezes, neste mês, na Faculdade de Letras. Tenho recebido convites para passar o filme em centros culturais, bibliotecas etc. Saibam, entretanto, que não se trata de maneira alguma de um filme de cineasta, mas de um filme amador, de um apaixonado pela poesia, de um poeta, de um professor, de um crítico literário. Nesses filmes que tenho feito, meu objetivo é tanto resguardar a memória de poetas, guardá-las em conversa e falando seus poemas, quanto, na medida do possível, intervir em nosso meio de poesia e, se possível, para além dele. Assista o documentário na íntegra abaixo:

Alberto Pucheu é poeta e professor de Teoria Literária na UFRJ. Publicou, entre outros, de Que porra é essa – poesia?A fronteira desguarnecida e Para que poetas em tempos de terrorismo?

sexta-feira, 27 de setembro de 2019

POESIA NÃO É UM LUXO, DE AUDRE LORDE



A qualidade da luz pela qual escrutinamos nossas vidas tem impacto direto sobre o produto que vivemos, e sobre as mudanças que esperamos trazer por essas vidas. É dentro dessa luz que nós formamos aquelas ideias pelas quais alcançamos nossa mágica e a fazemos realizada. Isso é poesia como iluminação, pois é pela poesia que nós damos nome àquelas ideias que estão – até o poema – inominadas e desformes, ainda por nascer, mas já sentidas. Essa destilação da experiência da qual brota poesia verdadeira pare pensamento como sonho pare conceito, como sentimento pare ideia, e conhecimento pare (precede) entendimento.
Conforme nós aprendemos a sustentar a intimidade do escrutínio e florescer dentro dela, conforme aprendemos a usar os produtos daquele escrutínio para poder dentro de nossa vida, aqueles medos que comandam nossas vidas e formam nossos silêncios começam a perder o controle sobre nós.
Para cada de nós como mulheres, há um lugar escuro por dentro, onde escondido e crescendo nosso espírito verdadeiro se ergue, “lindo / e firme como uma castanha / opondo-se colunar ao (v)nosso pesadelo de fraqueza”[1] e impotência.
Esses lugares de possibilidade dentro de nós são escuros porque são ancestrais e escondidos; eles sobreviveram e cresceram fortes através daquela escuridão. Dentro desses lugares profundos, cada uma de nós mantém uma reserva incrível de criatividade e poder, de emoção e sentimento não examinado e não registrado. O lugar de poder de mulher dentro de cada uma de nós não é branco nem superfície; é escuro, é ancestral, e é profundo.
Quando vemos a vida no modelo europeu unicamente como um problema a ser solucionado, nós contamos somente com nossas ideias para nos deixar livres, pois isso foi o que os patriarcas brancos nos disseram que era precioso.
Mas quanto mais vamos entrando em contato com nossa consciência de vida ancestral, não europeia, como uma situação a ser experienciada e com a qual interagir, nós aprendemos mais e mais a cultivar nossos sentimentos, e a respeitar aquelas fontes secretas de nosso poder de onde vem conhecimento verdadeiro e, portanto, ações duradouras vêm.
Nesse ponto no tempo, acredito que as mulheres carregamos dentro de nós mesmas a possibilidade de fusão dessas duas abordagens tão necessárias à sobrevivência, e chegamos perto dessa combinação em nossa poesia. Eu falo aqui de poesia como uma destilação revelatória da experiência, não o jogo de palavras estéril que, muitas vezes, os patriarcas brancos distorceram a palavra poesia para significar – para cobrir um desejo desesperado por imaginação sem vislumbre.

Para mulheres, então, poesia não é um luxo. Ela é uma necessidade vital de nossa existência. Ela forma a qualidade da luz dentro da qual predizemos nossas esperanças e sonhos em direção a sobrevivência e mudança, primeiro feita em linguagem, depois em ideia, então em ação mais tocável. Poesia é a maneira com que ajudamos a dar nome ao inominado, para que possa ser pensado. O horizonte mais distante de nossas esperanças e medos é calçado por nossos poemas, talhado das experiências pétreas de nossas vidas diárias.



Conforme eles se tornam conhecidos e aceitos por nós, nossos sentimentos e a exploração honesta deles se tornam santuários e solo polinizado para o mais radical e audaz de ideias. Eles se tornam um abrigo para aquela diferença tão necessária à mudança e a conceituação de qualquer ação significativa. Agora mesmo, eu poderia nomear pelo menos dez ideias que eu teria achado intoleráveis ou incompreensíveis e assustadoras, exceto se tivessem vindo depois de sonhos e poemas. Isso não é fantasia tola, mas uma atenção disciplinada ao verdadeiro significado de “isso parece certo para mim.” Nós podemos nos treinar a respeitar nossos sentimentos e transpô-los em uma linguagem para que possam ser compartilhados. E onde aquela linguagem ainda não existe, é nossa poesia que ajuda a tecê-la. Poesia não é só sonho e visão; ela é a estrutura óssea de nossas vidas. Ela lança as fundações para um futuro de mudança, uma ponte entre nossos medos do que nunca aconteceu antes.
Possibilidade não é para sempre nem instante. Não é fácil sustentar crença em sua eficácia. Às vezes podemos trabalhar muito e duro para estabelecer uma primeira trincheira de resistência real às mortes que esperam que vivamos, só para ter essa trincheira roubada ou ameaçada por aquelas calúnias que fomos socializadas a temer, ou pela retirada daquelas aprovações que fomos alertadas a buscar por segurança. Mulheres nos vemos diminuídas ou abrandadas pelas falsamente benignas acusações de infantilidade, de não-universalidade, de mutabilidade, de sensualidade. E quem pergunta a questão: eu estou alterando sua aura, suas ideias, seus sonhos, ou eu estou meramente movendo você a atos temporários e reativos? E mesmo que a segunda não seja má tarefa, é uma que deve ser vista no contexto de uma necessidade de verdadeira alteração das fundações mesmas de nossas vidas.
Os patriarcas brancos nos disseram: penso, logo existo. A mãe Negra dentro de nós – a poeta – sussurra em nossos sonhos: eu sinto, portanto eu posso ser livre. Poesia cunha a linguagem para expressar e empenhar essa demanda revolucionária, a implementação daquela liberdade.
Contudo, a experiência nos ensinou que ação no agora é também necessária, sempre. Nossas crianças não podem sonhar a não ser que elas vivam, elas não podem viver a não ser que estejam nutridas, e quem mais vai alimentá-las da comida verdadeira sem a qual seus sonhos não serão nada diferentes dos nossos? “Se você quer que nós mudemos o mundo algum dia, nós ao menos tempos que viver tempo o bastante para crescer!”, grita a criança.
Às vezes nos drogamos com sonhos de ideias novas. A cabeça vai nos salvar. O cérebro sozinho vai nos libertar. Mas não há ideias novas ainda esperando nas asas para nos salvar como mulheres, como humanas. Só há aquelas velhas e esquecidas, novas combinações, extrapolações e reconhecimentos desde dentro nós mesmas – junto à renovada coragem para tenta-las. E nós temos que encorajar constantemente a nós mesmas e a cada outra para tentarmos as ações heréticas que nossos sonhos implicam, e que tantas das nossas velhas ideias desprezam. Na linha de frente de nossa movimentação até mudança, só há poesia para aludir à possibilidade feita real. Nossos poemas formulam as implicações de nós mesmas, o que sentimos dentro e ousamos fazer realidade (ou trazer ação de acordo com), nossos medos, nossas esperanças, nossos terrores mais cultivados.
Pois dentro de estruturas vivas definidas pelo lucro, pelo poder linear, pela desumanização institucional, nossos sentimentos não foram feitos para sobreviver. Mantidos por perto como adjuntos inevitáveis ou passatempos prazenteiros, era esperado que sentimentos se curvassem a pensamento como era esperado que mulheres se curvassem a homens. Mas as mulheres temos sobrevivido. Como poetas. E não há sofrimentos novos. Nós já os sentimos todos. Nós escondemos tal fato no mesmo lugar em que nós escondemos nosso poder. Eles emergem em nossos sonhos, e são nossos sonhos que apontam o caminho para liberdade. Aqueles sonhos se tornam realizáveis por nossos poemas que nos dão a força e coragem para ver, sentir, falar, e ousar.
Se o que precisamos para sonhar, para mover nossos espíritos mais profunda e diretamente até o encontro e através de promessa, é menosprezado como luxo, então nós desistimos do cerne – a fonte – de nosso poder, nossa mulheridade; nós desistimos do futuro de nossos mundos.
Pois não há ideias novas. Só há novas maneiras de fazê-las sentidas – de examinar como nos parecem aquelas ideias sendo vividas no domingo de manhã às 7 A.M, depois do café da manhã, durante amor voraz, fazendo guerra, parindo, chorando nossxs mortxs – enquanto nós sofremos as velhas esperas, combatemos os velhos conselhos e medos de sermos silentes e impotentes e sós, enquanto nós provamos nossas possibilidades e forças.





[1] Traduzido por tatiana nascimento, novembro de 2012. dissonante@gmail.com / traduzidas.wordpress.com
[2] Publicado pela primeira vez em Chrysalis: A Magazine of Female Culture, n. 3 (1977). Nota da autora.

segunda-feira, 23 de setembro de 2019

O TRISTE FIM DE JAIR MESSIAS BOLSONARO, POR JOSÉ EDUARDO AGUALUSA


Jair acordou a meio da noite. Mandara colocar uma cama dentro do closet e era ali que dormia. Durante o dia tirava a cama, instalava uma secretária e recebia os filhos, os ministros e os assessores militares mais próximos.
Alguns estranhavam. Entravam tensos e desconfiados no armário, esforçando-se para que os seus gestos não traíssem nenhum nervosismo. Interrogado a respeito pela Folha de São Paulo, o deputado Major Olimpio, que chegou a ser muito próximo de Jair, tentou brincar: “Não estou sabendo, mas não vou entrar em armário nenhum. Isso não é hétero.” Michelle, que também se recusava a entrar no armário, fosse de dia ou de noite, optou por dormir num outro quarto do Palácio da Alvorada.
Aliás, o edifício já não se chamava mais Palácio da Alvorada. Jair oficializara a mudança de nome: “Alvorada é coisa de comunista!” — Esbravejara: “Certamente foi ideia desse Niemeyer, um esquerdopata sem vergonha.”
O edifício passara então a chamar-se Palácio do Crepúsculo. O Presidente tinha certa dificuldade em pronunciar a palavra, umas vezes saía-lhe grupúsculo, outras prepúcio, mas achava-a sólida, máscula, marcial. Ninguém se opôs.
Naquela noite, pois, Jair Messias Bolsonaro despertou dentro de um closet, no Palácio do Crepúsculo, com uma gargalhada escura rompendo das sombras. Sentou-se na cama e com as mãos trêmulas procurou a glock 19, que sempre deixava sob o travesseiro.
— Largue a pistola, não vale a pena!
A voz era rouca, trocista, com um leve sotaque baiano. Jair segurou a glock com ambas as mãos, apontando-a para o intenso abismo à sua frente:
— Quem está aí?
Viu então surgir um imenso veado albino, com uma armação incandescente e uns largos olhos vermelhos, que se fixaram nos dele como uma condenação. Jair fechou os olhos. Malditos pesadelos.
Vinha tendo pesadelos há meses, embora fosse a primeira vez que lhe aparecia um veado com os cornos em brasa. Voltou a abrir os olhos. O veado desaparecera. Agora estava um índio velho à sua frente, com os mesmos olhos vermelhos e acusadores:
— Porra! Quem é você?
— Tenho muitos nomes. — Disse o velho. — Mas pode me chamar Anhangá.
— Você não é real!
— Não?
— Não! É a porra de um sonho! Um sonho mau!
O índio sorriu. Era um sorriso bonito, porém nada tranquilizador. Havia tristeza nele. Mas também ira. Uma luz escura escapava-lhe pelas comissuras dos lábios:
— Em todo o caso, sou seu sonho mau. Vim para levar você.
— Levar para onde, ô paraíba? Não saio daqui, não vou para lugar nenhum.
— Vou levar você para a floresta.
— Já entendi. Michelle me explicou esse negócio dos pesadelos. Você é meu inconsciente querendo me sacanear. Quer saber mesmo o que acho da Amazónia?! Quero que aquela merda arda toda! Aquilo é só árvore inútil, não tem serventia. Mas no subsolo há muito nióbio. Você sabe o que é nióbio? Não sabe porque você é índio, e índio é burro, é preguiçoso. O pessoal faz cordãozinho de nióbio. As vantagens em relação ao ouro são as cores, e não tem reação alérgica. Nióbio é muito mais valioso que o ouro.
O índio sacudiu a cabeça, e agora já não era um índio, não era um veado — era uma onça enfurecida, lançando-se contra o presidente:
— Acabou!
Anhangá colocou um laço no pescoço de Jair, e no instante seguinte estavam ambos sobre uma pedra larga, cercados pelo alto clamor da floresta em chamas. Jair ergueu-se, aterrorizado, os piscos olhos incrédulos, enquanto o incêndio avançava sobre a pedra:
— Você não pode me deixar aqui. Sou o presidente do Brasil!
— Era. — Rugiu Anhangá, e foi-se embora.
Na manhã seguinte, o ajudante de ordens entrou no closet e não encontrou o presidente. Não havia sinais dele. “Cheira a onça”, assegurou um capitão, que nascera e crescera numa fazenda do Pantanal. Ninguém o levou a sério.
Ao saber do misterioso desaparecimento do marido, Michelle soltou um fundo suspiro de alívio.
Os generais soltaram um fundo suspiro de alívio. Os políticos (quase todos) soltaram um fundo suspiro de alívio.
Os artistas e escritores soltaram um fundo suspiro de alívio. Os gramáticos e outros zeladores do idioma, na solidão dos respetivos escritórios, soltaram um fundo suspiro de alívio.
Os cientistas soltaram um fundo suspiro de alívio. Os grandes fazendeiros soltaram um fundo suspiro de alívio.
Os pobres, nos morros do Rio de Janeiro, nas ruas cruéis de São Paulo, nas palafitas do Recife, soltaram um fundo suspiro de alívio.
As mães de santo, nos terreiros, soltaram um fundo suspiro de alívio.
Os gays, em toda a parte, soltaram um fundo suspiro de alívio.
Os índios, nas florestas, soltaram um fundo suspiro de alívio.
As aves, nas matas, e os peixes, nos rios e no mar, soltaram um fundo suspiro de alívio.
O Brasil, enfim, soltou um fundo suspiro de alívio — e a vida recomeçou, como se nunca, à superfície do planeta Terra, tivesse existido uma doença chamada Jair Messias Bolsonaro.

Publicado originalmente na revista Visão de Portugal
Disponível em:  https://blogdojuca.uol.com.br/2019/09/o-triste-fim-de-jair-messias-bolsonaro/



domingo, 5 de maio de 2019

O PRANTO DOS LIVROS, POR ANTONIO CANDIDO


Texto de 17 de janeiro de 1997, extraído de um dos quase cem cadernos deixados pelo autor de Formação da Literatura Brasileira



Foto: Cristiano Mascaro_2017

Morto, fechado no caixão, espero a vez de ser cremado. O mundo não existe mais para mim, mas continua sem mim. O tempo não se altera por causa da minha morte, as pessoas continuam a trabalhar e a passear, os amigos misturam alguma tristeza com as preocupações da hora e lembram de mim apenas por intervalos. Quando um encontra o outro começa o ritual do “veja só”, “que pena”, “ele estava bem quando o vi a última vez”, “também, já tinha idade”, “enfim, é o destino de todos”.

Os jornais darão  notícias misturadas de acertos e erros e haverá informações desencontradas, inclusive dúvida quanto à naturalidade. Era mineiro? Era carioca? Era paulista? É verdade que estudou na França? Ou foi na Suíça? O pai era rico? Publicou muitos livros de pequena tiragem na maioria esgotados. Teve importância como crítico durante alguns anos, mas estava superado havia tempo. Inclusive por seus ex-assistentes Fulano e Beltrano. Os alunos gostavam das aulas dele, porque tinha dotes de comunicador. Mas o que tinha de mais saliente era certa amenidade de convívio, pois sabia ser agradável com pobres e ricos. Isso, quando se conseguia encontrá-lo, porque era esquivo e preferia ficar só, principalmente mais para o fim da vida. Uns dizem que era estrangeirado, outros que pecava por nacionalismo. Era de esquerda mas meio incoerente e tolerante demais. Militava pouco e no PT funcionou sobretudo como medalhão. Aliás, há quem diga que teve jeito de medalhão desde moço. Muito convencional.  Mas é verdade que fugia da publicidade, recusava prêmios e medalhas quando podia e não gostava de homenagens. Contraditório, como toda a gente. O fato é que havia em torno dele muita onda, e chegou-se a inventar que era uma “unanimidade nacional”. No entanto, foi sempre atacado, em artigos, livros, declarações, e contra ele havia setores de má vontade, como é normal. Enfim, morreu. Já não era sem tempo e que a terra lhe seja leve.

Mas o que foi leve não foi a terra pesada, estímulo dos devaneios da vontade. Foi o fogo sutil, levíssimo, que consumiu a minha roupa, a minha calva, os meus sapatos, as minhas carnes insossas e os meus ossos frágeis. Graças a ele fui virando rapidamente cinza, posta a seguir num saquinho de plástico com o meu nome, a data da morte e a da cremação. Enquanto isso, havia outros seres que pensavam em mim com uma tristeza de amigos mudos: os livros.

De vários cantos, de vários modos, a minha carcaça que evitou a decomposição por meio da combustão  suscita o pesar dos milhares dos milhares de livros que foram meus e de meus pais, que conheciam o tato da minha mão, o cuidado do meu zelo, a atenção com que os limpava, mudava de lugar, encadernava, folheava, doava em blocos para serviço de outros. Livros que ficavam em nossa casa ou se espalhavam pelo mundo, na Faculdade de Poços, na de Araraquara, na Católica do Rio, na Unicamp, na USP, na Casa de Cultura de Santa Rita, na ex-Economia e Humanismo, além dos que foram furtados e sabe Deus onde estão - todos sentindo pena do amigo se desfazer em mero pó e lembrando os tempos em que viviam com ele, anos e anos a fio. Então, dos recantos onde estão, em estantes de ferro e de madeira, fechadas ou abertas, bem ou maltratados, usados ou esquecidos, eles hão de chorar lágrimas invisíveis de papel e de tinta, de cartonagem e percalina, de couro de porco e pelica, de couro da Rússia e marroquim, de pergaminho e pano. Será o pranto mudo dos livros pelo seu amigo pulverizado que os amou desde menino, que passou a vida tratando deles, escolhendo para eles o lugar certo, removendo-os, defendendo-os dos bichos e até os lendo. Não todos, porque uma vida não bastaria para isso e muitos estavam além da sua compreensão; mas milhares deles. Na verdade, ele os queria mais do que como simples leitura. Queria-os como esperança de saber, como companhia, como vista alegre, como pano de fundo da vida precária e sempre aquém. Por isso, porque os recolheu pelo que eram, os livros choram o amigo que atrasava pagamentos de aluguel para comprá-los, que roubava horas ao trabalho para procurá-los, onde quer que fosse: nas livrarias pequenas e grandes de Araraquara ou Catanduva, de Blumenau ou João Pessoa, de Nova York ou New Haven; nos sebos de São Paulo, do Rio, de Porto Alegre; nos buquinistas de Paris e nos alfarrabistas de Lisboa, por toda parte onde houvesse papel impresso à venda. O amigo que, não sendo Fênix, não renascerá das cinzas a que está sendo reduzido, ao contrário deles, que de algum modo viverão para sempre.

CANDIDO, Antonio. “O pranto dos livros”. In: Revista Piauí. N. 145, ano 13, outubro de 2018. P.50-51.


Mais: O "pranto mudo dos livros" de Antonio Candido.
https://www.unicamp.br/unicamp/ju/noticias/2018/11/29/o-pranto-mudo-dos-livros-de-antonio-candido

sábado, 20 de abril de 2019

À CIDADE, DE MAILSON FURTADO


E a cidade, o que é? Para mim pode ser uma coisa, para o leitor, outra. Para um poeta, ainda outra e mais outra, dependendo de quem entrar na conversa. Cada olhar percebe a cidade de forma diferente. Muitas vezes é possível ver, na cidade, o que quase ninguém vê. Há, na cidade, o que se esconde e o que se dá aos olhos. E é assim que Marco Polo fala ao grande Kublai Khan das cidade que visitou, nas narrativas constituintes do livro As cidades invisíveis (1972), de Ítalo Calvino.

As cidades de Calvino têm nomes de mulheres. Cada uma de suas cidades possuem características que são apenas suas. Características que as tornam únicas, belas e invejáveis. A cidade é, na narrativa de Calvino, um símbolo que nos remete, como faz com o próprio autor, à reflexões, experiências e conjecturas. De todas as cidades constantes na referida narrativa, nos chama particular atenção a cidade de Tecla, que se constrói constantemente sem jamais se concluir, sendo esse seu projeto de existência.

Partimos das cidades invisíveis de Calvino, para apresentarmos uma breve análise da poesia que nos é apresentada pelo poeta Maílson Furtado (vencedor do Prêmio Jabuti de Poesia, de 2018) no seu À Cidade (2017). O livro está organizado em quatro partes, que podem ser compreendidas como quatro grandes poemas que se entrelaçam e dialogam em simbiose. A primeira parte chama-se “Presente” (p. 9 – 20), a segunda, “Pretérito” (p. 21 – 36), a terceira é denominada de “Pretérito mais-que-perfeito” (p. 37 – 50), enquanto a quarta parte chama-se “Futuro do pretérito” (p. 51 – 61). O livro traz um texto de Oswald Barroso (nas “orelhas”) e o posfácio “a cidade pelo “arquivo dos pés” (p. 63 – 69), de Décio Braúna. A última página do livro (p.70) traz os dados biobliográficos do autor.

A estrutura escolhida por Furtado para a organização do seu À Cidade conduz o leitor pelas ruas e pelo cotidiano de uma cidade que, assim como poderia ser Varjota, no interior do Ceará, poderia ser qualquer outra cidade (Campo Grande, Santa Cruz, Sinimbu...). Ao contrário do ocorre na narrativa de Calvino, a poesia de Maílson Furtado não parece tratar de nenhuma cidade invisível, mas de uma das muitas cidades observáveis no Brasil. Claro que a poesia em questão não trata das grades metrópoles, daquelas que engolem o ser humano e o cospe como se não fosse mais que uma bagaço, um nada. A poesia de Furtado, pelo contrário, deita olhos sobre as cidades que ainda acordam com o galo e dormem quando se apagam as luzes dos postes. A máxima “fale de sua aldeia”, de Tolstoi, é levada ao pé da letra pelo poeta cearense, quando traz para seus versos o velho rio Acaraú (“... e tudo vale para namorar o acaraú ...”), os meninos, os mosquitos, o quintal, os cachorros, as cacimbas, as cadeiras na calçada e todos os elementos que constituem a paisagem de uma pequena cidade de um interior qualquer, onde, como já havia dito Drummond, tudo passa devagar.

Os poemas que compõem a obra de Maílson Furtado são dedicados à cidade “e aos que nunca dedicarei nada”, dedicou o poeta. O uso dos tempos verbais como títulos de cada uma das quatro partes do livro servem como marcação da maneira como o tempo se dá na cidade, objeto da poesia do autor. Assim, “tudo sai”, “a noite vai”, “a noite adentra”, “o poste acende”, “noutro dia/vem outro sol”, “a cidade acorda”, “a manhã deságua”, “a vida segue”. 

E a cidade, o que é?

Maílson Furtado
A cidade é uma representação do abrigo, do abraço e do aconchego. Mas também pode ser a esfinge que, de forma diferente, observa o filho / morador e o viajante / forasteiro. Conhecê-la é também decifrá-la ou por ela ser devorado. O eu lírico da poesia de Maílson Furtado parece não correr o risco de ser engolido pela cidade, aparentando haver entre ambos uma certa cumplicidade. 

Como um imenso e belo monstro a se metamorfosear dia e noite, a cidade move-se lentamente, mas também descansa. Do topo de uma colina imaginária, o eu lírico observa sua transmutação. Às vezes desce, caminha por suas ruas, por seu dorso, brinca com os meninos, se lacera, se desvirgina, mas a cidade não se define.

Jáder de Carvalho, José Alcides Pinto e Francisco Carvalho são poetas cearenses/universais que, entre outros, também foram telúricos e cantaram a cidade, suas cidades, em versos de alta qualidade poética . Contudo, depois de um longo período de estagnação, sem que aparecesse uma grande poesia em terras de Alencar, eis que surgem os versos de Maílson Furtado que, tal qual um Marco Polo, apresenta aos leitores a cidade transformada em poesia. Para concebê-la, no entanto, é necessário acompanhar a imaginação do poeta e tirar os pés do lugar-comum, pois “... a cidade é uma fotografia / que nunca é a mesma / uma hoje / outra amanhã...”, tal qual Tecla, de Calvino. À Cidade (2017), de Maílson Furtado já pode ser considerado um acontecimento poético no âmbito da literatura brasileira. Da cidade, dela mesma, não sei.


Maílson Furtado, acompanhado dos poetas Alan Mendonça, Bruno Paulino, Dércio Braúna e Renato Pessoa, participa do trabalho intitulado Cinco inscrições da mortalidade (2018). Maílson Furtado também é autor de Sortimento (2012), Conto a Conto (2013), e Versos Pingados, de 2014.









domingo, 14 de abril de 2019

TEMPOS DE CIGARRO SEM FILTRO, DE JOSÉ MASCHIO


São muitos os aspectos que contribuem para que uma obra literária se mantenha em consonância com seu tempo. Depois de escrita, a obra ganha pernas e anda. Sai para a vida tal qual o filho que não criamos para nós, mas para o mundo. Assim, cada obra está dentro de um contexto sócio-histórico e seu nível de compreensão dependerá das potencialidades interpretativas do leitor.

Tempos de cigarro sem filtro (2017), de José Maschio, publicado pela editora Kan, surge num contexto histórico bastante caro para a sociedade brasileira. No ano que antecedeu sua publicação, uma clara ruptura democrática se deu no país, seguindo praticamente o mesmo modus operandi que implantou a ditadura no Brasil de 1964. Os resultados do golpe de 2016 ainda resvalam na sociedade brasileira, com instituições travadas, autoritarismo, perseguições, ataques à imprensa e desprezo pelos direitos humanos. Ao caos estabelecido se juntaram elementos novos, como a pós-verdade e as chamadas fake News

Em resumo, os “tempos de cigarro sem filtro” ameaçam voltar. Os personagens, no entanto, são outros. Já não se tem o “gordo ministro a anunciar o milagre econômico brasileiro” e nem o” rosto sombrio e sério do general Carrascoazul anunciando medidas contra terríveis terroristas e comunistas”. Corpos já não são encontrados no rio Paranapanema, mas os opositores são constantemente ameaçados com a ponta da praia. Impunes. Insolentes. Juízes sabem.

O romance de José Maschio está organizado em 31 capítulos e conta com uma breve apresentação (nas orelhas) de Luiz Taques. A linguagem é fluida e o texto, seguindo o estilo jornalístico, é constituído de períodos curtos. Dessa forma, o autor coloca em sua escritura a brevidade e a rapidez da comunicação, comuns aos tempos da repressão. O uso que Maschio faz da linguagem nos permite perceber aproximações com os grandes mestres da narrativa curta, como Ernest Hemingway, Dalton Trevisan e João Antonio. 

É por intermédio da vida do personagem Ruço (não Russo), que o narrador reconstrói um dos períodos mais violentos da vida nacional. Por sua narrativa, passam a selvageria do Estado contra aqueles que considera inimigos, a perseguição, a dor, a tortura, a perda, a morte. No período no qual a narrativa de Maschio se insere, lê-se Sete Palmos de Terra e um Caixão, de Josué de Castro. Na atual conjuntura, lê-se o “guru da Virgínia” e outras absurdetes (ou seriam “olavetes”?). Os desavisados  e mal intencionados falam, mesmo sem ter lido Michael Young, em meritocracia. Em “tempos de cigarro sem filtro” reina a ignorância. Sobre isso, lê-se:


A ignorância é a mãe de todas as misérias e mazelas do mundo. O pai tinha dito isso. Lembrava Ruço. E sentiu-se ignorante. Queria entender essa miséria toda, a contrastar com a beleza de cartão postal da cidade, mas não atinava uma explicação satisfatória. No Sul meninos branquelos, como ele tinha sido na infância, eram engraxates. Nos pardieiros, e Ruço já se enturmara, as prostitutas eram loiras, brancas (...), mas o que incomodava Ruço eram as meninas. À noite, elas apareciam pelos bares do centro, crianças ainda, loirinhas, lindas. A mendigar moedas e oferecer sexo barato (...). (MASCHIO, 2017:95)


O romance de José Maschio, registre-se, é ficção. Não é um romance-reportagem, nem muito menos um ensaio de sociologia. Tempos de cigarro sem filtro é ficção e o autor não pode ser "culpado" se aquilo que conta guarda semelhanças com nomes, pessoas ou acontecimentos reais. Qualquer aproximação é mera coincidência. Na narrativa, há um delegado que “prende e arrebenta” e que sonha com Brasília. “Era meticuloso. Não podia deixar brechas (...). Visitou o juiz. Judiciário sabujo. Pediu. Não pediu, mandou. Mandava como delegado. Imagina como deputado eleito?” (p.99). A ficção, prezado leitor, tem dessas coisas!

José Maschio
Em Tempos de cigarro sem filtro (2017), Ruço nada mais é do que uma pequena peça na grande “máquina de triturar carnes” do Sistema. Impedido de viver dignamente, “o máximo que Ruço sentia era rancor. Estava abraçado ao seu rancor” (p.122). Em João Antonio é Abraçado ao meu rancor, de 1986. Ruço, sabemos pelo narrador, era “afinado na arte de chutar tampinhas”. E eis mais um intertexto: "Afinação da arte de chutar tampinhas", conto de João Antonio do livro Malagueta, Perus e Bacanaço (1963).


Como dito, o livro de José Maschio foi publicado no ano de 2017, mas poderia ter sido publicado ontem. Os tempos de cigarro sem filtro que acreditávamos terem ido para sempre, ameaçam voltar com toda sua brutalidade. E já nos apavora, como diz a canção, “ver emergir o monstro da lagoa”. Neste contexto, muitos já se sentem como o personagem Polska, exilados dentro de seu próprio país. 

De atualidade surpreendente, a narrativa de José Maschio é leitura indispensável para se compreender aquilo que primeiro se dá como tragédia, mas que depois vem como farsa. 

quinta-feira, 11 de abril de 2019

MINEIRINHO, POR CLARICE LISPECTOR




É, suponho que é em mim, como um dos representantes do nós, que devo procurar por que está doendo a morte de um facínora. E por que é que mais me adianta contar os treze tiros que mataram Mineirinho do que os seus crimes. Perguntei a minha cozinheira o que pensava sobre o assunto. Vi no seu rosto a pequena convulsão de um conflito, o mal-estar de não entender o que se sente, o de precisar trair sensações contraditórias por não saber como harmonizá-las. Fatos irredutíveis, mas revolta irre­dutível também, a violenta compaixão da revolta. Sentir-se dividido na própria perplexidade diante de não poder esquecer que Mineirinho era perigoso e já matara demais; e no entanto nós o queríamos vivo. A cozinheira se fechou um pouco, vendo-me talvez como a justiça que se vinga. Com alguma raiva de mim, que estava mexendo na sua alma, respondeu fria: “O que eu sinto não serve para se dizer. Quem não sabe que Mineirinho era criminoso? Mas tenho certeza de que ele se salvou e já entrou no céu”. Respondi-lhe que “mais do que muita gente que não matou”.Por que? No entanto a primeira lei, a que protege corpo e vida insubstituíveis, é a de que não matarás. Ela é a minha maior garantia: assim não me matam, porque eu não quero morrer, e assim não me deixam matar, porque ter matado será a escuridão para mim.
Esta é a lei. Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina — porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro.
Essa justiça que vela meu sono, eu a repudio, humilhada por precisar dela. Enquanto isso durmo e falsamente me salvo. Nós, os sonsos essenciais.
Para que minha casa funcione, exijo de mim como primeiro dever que eu seja sonsa, que eu não exerça a minha revolta e o meu amor, guardados. Se eu não for sonsa, minha casa estremece. Eu devo ter esquecido que embaixo da casa está o terreno, o chão onde nova casa poderia ser erguida. Enquanto isso dormimos e falsamente nos salvamos.
Até que treze tiros nos acordam, e com horror digo tarde demais — vinte e oito anos depois que Mineirinho nasceu – que ao homem acuado, que a esse não nos matem. Porque sei que ele é o meu erro. E de uma vida inteira, por Deus, o que se salva às vezes é apenas o erro, e eu sei que não nos salvaremos enquanto nosso erro não nos for precioso. Meu erro é o meu espelho, onde vejo o que em silêncio eu fiz de um homem. Meu erro é o modo como vi a vida se abrir na sua carne e me espantei, e vi a matéria de vida, placenta e sangue, a lama viva.
Em Mineirinho se rebentou o meu modo de viver. Como não amá-lo, se ele viveu até o décimo-terceiro tiro o que eu dormia? Sua assustada violência. Sua violência inocente — não nas conseqüências, mas em si inocente como a de um filho de quem o pai não tomou conta.
Tudo o que nele foi violência é em nós furtivo, e um evita o olhar do outro para não corrermos o risco de nos entendermos. Para que a casa não estre­meça.
A violência rebentada em Mineirinho que só outra mão de homem, a mão da esperança, pousando sobre sua cabeça aturdida e doente, poderia aplacar e fazer com que seus olhos surpreendidos se erguessem e enfim se enchessem de lágrimas. Só depois que um homem é encontrado inerte no chão, sem o gorro e sem os sapatos, vejo que esqueci de lhe ter dito: também eu.
Eu não quero esta casa. Quero uma justiça que tivesse dado chance a uma coisa pura e cheia de desamparo em Mineirinho — essa coisa que move montanhas e é a mesma que o fez gostar “feito doido” de uma mulher, e a mesma que o levou a passar por porta tão estreita que dilacera a nudez; é uma coisa que em nós é tão intensa e límpida como uma grama perigosa de radium, essa coisa é um grão de vida que se for pisado se transforma em algo ameaçador — em amor pisado; essa coisa, que em Mineirinho se tornou punhal, é a mesma que em mim faz com que eu dê água a outro homem, não porque eu tenha água, mas porque, também eu, sei o que é sede; e também eu, que não me perdi, experimentei a perdição.
A justiça prévia, essa não me envergonharia. Já era tempo de, com ironia ou não, sermos mais divinos; se adivinhamos o que seria a bondade de Deus é porque adivinhamos em nós a bondade, aquela que vê o homem antes de ele ser um doente do crime. Continuo, porém, espe­rando que Deus seja o pai, quando sei que um homem pode ser o pai de outro homem.
E continuo a morar na casa fraca. Essa casa, cuja porta protetora eu tranco tão bem, essa casa não resistirá à primeira ventania que fará voar pelos ares uma porta tran­cada. Mas ela está de pé, e Mineirinho viveu por mim a raiva, enquanto eu tive calma.
Foi fuzilado na sua força desorientada, enquanto um deus fabricado no último instante abençoa às pressas a minha maldade organizada e a minha justiça estupidificada: o que sustenta as paredes de minha casa é a certeza de que sempre me justificarei, meus amigos não me justificarão, mas meus inimigos que são os meus cúmplices, esses me cumprimentarão; o que me sustenta é saber que sempre fabricarei um deus à imagem do que eu precisar para dormir tranqüila e que outros furtivamente fingirão que estamos todos certos e que nada há a fazer.
Tudo isso, sim, pois somos os sonsos essenciais, baluartes de alguma coisa. E sobretudo procurar não entender.
Porque quem entende desorganiza. Há alguma coisa em nós que desorganizaria tudo — uma coisa que entende. Essa coisa que fica muda diante do homem sem o gorro e sem os sapatos, e para tê-los ele roubou e matou; e fica muda diante do São Jorge de ouro e diamantes. Essa alguma coisa muito séria em mim fica ainda mais séria diante do homem metralhado. Essa alguma coisa é o assassino em mim? Não, é desespero em nós. Feito doidos, nós o conhecemos, a esse homem morto onde a grama de radium se incendiara. Mas só feito doidos, e não como sonsos, o conhecemos. É como doido que entro pela vida que tantas vezes não tem porta, e como doido compreendo o que é perigoso compreender, e só como doido é que sinto o amor profundo, aquele que se confirma quando vejo que o radium se irradiará de qualquer modo, se não for pela confiança, pela esperança e pelo amor, então miseravelmente pela doente coragem de destruição. Se eu não fosse doido, eu seria oitocentos policiais com oitocentas metralhadoras, e esta seria a minha honorabilidade.
Até que viesse uma justiça um pouco mais doida. Uma que levasse em conta que todos temos que falar por um homem que se desesperou porque neste a fala humana já falhou, ele já é tão mudo que só o bruto grito desarticulado serve de sinalização.
Uma justiça prévia que se lembrasse de que nossa grande luta é a do medo, e que um homem que mata muito é porque teve muito medo. Sobretudo uma justiça que se olhasse a si própria, e que visse que nós todos, lama viva, somos escuros, e por isso nem mesmo a maldade de um homem pode ser entregue à maldade de outro homem: para que este não possa cometer livre e aprovadamente um crime de fuzilamento.
Uma justiça que não se esqueça de que nós todos somos perigosos, e que na hora em que o justiceiro mata, ele não está mais nos protegendo nem querendo eliminar um criminoso, ele está cometendo o seu crime particular, um longamente guardado. Na hora de matar um criminoso – nesse instante está sendo morto um inocente. Não, não é que eu queira o sublime, nem as coisas que foram se tornando as palavras que me fazem dormir tranqüila, mistura de perdão, de caridade vaga, nós que nos refugiamos no abstrato.
O que eu quero é muito mais áspero e mais difícil: quero o terreno.
clispector assinatura
Fonte: http://www.ip.usp.br/portal/  , do livro: Para não esquecer. São Paulo: Ática, 1979 –  e também em  A legião estrangeira. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1964

domingo, 7 de abril de 2019

Cancioneiro Belchior, de José Gomes Neto


Organizado por José Gomes Neto, começa a circular no mercado o livro Cancioneiro Belchior (s/d), que tem como objetivo principal o estabelecimento de todas as letras escritas pelo poeta cearense. É claro, como tem sido dito por muitos estudiosos, a obra do compositor Belchior não cabe no conceito de “letra”, constituindo-se, na verdade, de poesia de raro esplendor. No entanto, não é esse o objetivo do referido Cancioneiro, mas colocar num só lugar, como dito, todas as letras produzidas pelo autor de “Como os nossos pais”.

Há muitos trabalhos como esse no mercado editorial brasileiro, como os de Lou Reed e Bob Dylan, por exemplo, publicados pela Companhia das Letras. Mas ainda não tínhamos nenhum sobre a poética de Belchior. Dessa forma,  Cancioneiro Belchior vem  preencher uma lacuna acerca da obra de um dos maiores nomes da Música Popular Brasileira – MPB.  Livros como o de Gomes Neto se inserem na linha de trabalhos como Like a Rolling Stone: Bob Dylan na encruzilhada, de Greil Marcus, Strange Fruit: Billie Holiday e a biografia de uma canção, de David Margolick ou ainda A love supreme: the story of John Coltrane’s signature album, de Ashley Kahn. Algumas dessas obras deitam olhos sobre a análise interpretativa de algumas composições, o que não é o caso de um cancioneiro que, conforme sua definição, é uma coleção de canções ou poesias de um determinado tempo ou autor.




O trabalho que agora é entregue ao público leitor começou a ser gestado ainda nos idos de 1980. Sobre esse começo, convém observarmos o que diz nos diz o organizador.


Já no início de 1980 começamos a pensar na realização do  projeto. Belchior trataria de enviar-me as letras, que deveriam ser digitadas e “trabalhadas” em  meus momentos de folga acadêmica. Sempre que tivesse espaço na apertada agenda de shows, Belchior viria a Floripa para discutirmos e estabelecermos a versão definitiva de cada letra. Às vezes, quando em férias ou durante as longas greves universitárias, conseguia acompanha-lo em suas viagens, adiantando a tarefa conjunta. (GOMES NETO, s/d:47)


O Cancioneiro Belchior está organizado em três blocos, a saber: Canções de estrada, Noutras estradas e A voz nas estradas. No primeiro bloco foram agrupadas as composições divulgadas em obras autorais, os chamados “discos de carreira”, sejam elas compostas ou não em parceria. O segundo bloco, por sua vez, contém as canções escritas por Belchior e parceiros, que, conforme, Gomes Neto, gravaram em seus respectivos discos de carreira. No último bloco, tem-se as composições que Belchior fez para trilha sonora de peça teatral, assim como os trabalhos realizados com obras poéticas, como a de Carlos Drummond de Andrade (As várias caras de Drummond) e a de Cruz e Sousa (Belchior canta Cruz e Sousa). José Gomes Neto registra que a análise exaustiva e minuciosa de cada texto foi realizada por ele e por Belchior, tendo começado no início de 1980 e se estendido até 2005, com pequenos ou grandes intervalos ditados pela agenda dos dois. O Cancioneiro Belchior conta ainda com um Índice Discográfico e um Índice Alfabético das composições, a que se associa o verso inicial delas. O índice geral do livro segue a seguinte ordem: Índice alfabético das letras (p.7-16), Índice discográfico (p.17-26), Apresentação (texto de Jorge Mello, parceiro e amigo de Belchior, p.27-40), Introdução (p.41-68), Canções da estrada (p.69-230), Noutras estradas (p.231-258), A voz das estradas (p.259-282).

José Gomes Neto, respeitando os direitos dos herdeiros de Belchior, não incluiu no referido Cancioneiro, embora, segundo ele, fosse vontade de Belchior, algumas letras originais do poeta, tendo em vista pertencerem ao espólio que tramita na justiça. Gomes Neto mantém essas letras sob sua guarda. Além dessas, não constam do referido Cancioneiro, devido a questões legais, algumas poucas letras inéditas feitas em coautoria com Belchior, sejam elas traduções ou versões.

O Cancioneiro Belchior é, desde já, referência indispensável para todos aqueles que se dedicam a estudar a obra poética de Belchior, bem como para aqueles que ouvem suas canções, amam e mudam as coisas.

José Gomes Neto é também autor de A sagração da matéria e Opivm de vidro. Atualmente prepara em livro a correspondência que manteve com Belchior, por mais de 40 anos.

terça-feira, 26 de março de 2019

FRANCISCO CARVALHO E AS COISAS COMO AS COISAS NÃO SÃO

O poeta Francisco Carvalho, nascido em Russas (CE),  no ano de 1927, partiu para outras paragens no ano de 2013. Durante seus oitenta e seis anos de vida escreveu mais de trinta livros de poesia e alguns outros de exercícios literários. Passados quase cinco anos da sua morte, sua obra poética continua despertando interesse tanto do leitor comum quanto dos leitores especializados. Desse segundo grupo, cito especificamente os trabalhos Três dimensões da poética de Francisco Carvalho (1996), de Ana Vládia Mourão Aires e Francisco Carvalho: uma poesia de Tanatos e Eros (2000), de Maílma de Sousa. Mas ainda é muito pouco, quando levamos em consideração a amplitude poética da obra do autor, a qual se constitui como um verdadeiro argos de cem olhos no universo da literatura produzida em língua portuguesa.

A obra de Francisco Carvalho alcança a mesma qualidade poética daquela produzida por gigantes como T.S. Eliot, Seamus Heaney e Konstantinos Kavafis, por exemplo. Contudo, como se pode constatar, é mais fácil encontrar um livro do poeta grego Kavafis do que um Carvalho nas livrarias do Brasil, especificamente do Ceará. Isso não impede, no entanto, que a poesia de Francisco Carvalho se mantenha como uma das mais perfeitas representações da poesia em língua portuguesa, impactando aqueles que deitam olhos sobre seus poemas. Por outro lado, a ausência dos seus livros nas livrarias brasileiras impossibilita que mais leitores e pesquisadores possam se debruçar sobre tão rica obra.

O primeiro livro de Francisco Carvalho, Cristal da memória, foi publicado no ano de 1995. Desde lá, o poeta passou a publicar praticamente um livro  a cada ano. Embora alguns desses trabalhos ainda possam ser encontrados, outros já se tornaram raros, como é o caso de Canção atrás da esfinge (1956), Do girassol e da nuvem (1960), Rosa geométrica (1990), Flauta de Barro (1992) e O tecedor e sua trama (1992), por exemplo.

As temáticas observáveis na poesia de Francisco Carvalho abarcam aspectos populares e eruditos, resultando num fazer poético de altíssimo nível literário. Os próprios títulos dos livros do poeta já podem ser considerados verdadeiros poemas. Como por exemplo: O silêncio é uma figura geométrica (s/d), Barca dos sentidos (1989), Girassóis de barro (1997), Romance da nuvem pássaro (1998) e A concha e o rumor (2000).



Como se iniciar na obra de Francisco Carvalho? Uma boa forma é se deixar abduzir pela leitura de Memórias do Espantalho – poemas escolhidos (2004), uma seleção feita pelo próprio autor, englobando poemas do livro Os mortos azuis, de 1971,  até Centauros urbanos, de 2003. Ao final da leitura, o leitor compreenderá, então, a razão de se afirmar que a obra de Francisco Carvalho se erige como uma obra poética de qualidade universal, prenhe de palavras, que pulsam no peito e escorrem pelas veias.


Disponível em: http://fdr.org.br/maracaja/