quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

PARA BELCHIOR, COM AMOR

Belchior está entre os grandes artistas do seu tempo, por ter produzido uma das obras mais relevantes das letras brasileiras. Sem sombra de dúvidas, o autor de “divina comédia humana” está no mesmo nível qualitativo, poeticamente falando, de Bob Dylan, o que não é pouco, convenhamos.

Mas Belchior, assim como Dylan, não perde seu tempo com as idiossincrasias da mediocridade. Belchior, por exemplo, já deixou claro em entrevistas, que não é a fama que lhe interessa, mas a glória. Seja como for, o bardo cearense já registrou seu nome na história da cultura brasileira. Sua obra é, indiscutivelmente, um perfeito repositório de reflexões a respeito do homem e da cultura do seu tempo. 

Para alguns estudiosos da sua obra, Belchior compõe como se pintasse um quadro, daí a qualidade observada na escolha que faz de cada palavra na elaboração de seus poemas. Utilizamos aqui a lexia “poema”, por considerarmos que suas composições vão muito além da convencionalidade de uma letra de música. 

As composições do poeta de Sobral constituem-se em uma poesia tão grande quanto aquela produzida por João Cabral de Melo Neto, por exemplo. São secas e objetivas. São navalhas. Na sua metapoesia diz que não pode cantar como convém sem querer ferir ninguém. E embora afirme que sua poesia é “apenas uma canção”, ele sabe muito bem que não é só isso, ou seja, o poeta de “galos, noites e quintais” tem plena consciência do seu fazer poético, e o executa como o faz o ourives do poema “Profissão de fé”, de Olavo Bilac.

O presente texto, no entanto, não tem como objetivo discorrer sobre a poética de Belchior, mas apresentar, sucintamente, o livro que sai pela editora Miragem, como forma de homenagear o referido artista no ano em que se comemoram seus setenta anos de idade. O livro recebeu o título de Para Belchior com amor (2016), tendo sido organizado pelo escritor Ricardo Kelmer, o qual também é responsável pela apresentação do livro. O texto literário de Kelmer foi baseado no poema-canção “Divina comédia humana” (p.45-50). Ao todo, livro é composto de catorze textos literários, escritos por conterrâneos de Belchior, e livremente inspirados nas suas canções.

Na ordem em que surgem no livro, os textos são: “Alucinação” (p. 9 -13), por Thiago Arrais; “A palo seco” (p.15-20), por Ana Karla Dubiela; “Apenas um rapaz latino-americano” (p.21-28), por José Américo Bezerra Saraiva; “Como nossos pais” (p. 29-32), por Ricardo Guilherme; “Conheço meu lugar” (p. 33-35), por Ethel de Paula; “Coração selvagem” (p.37- 43), por Cleudene Aragão; “Fotografia 3x4” (p.51-54), por Raymundo Netto; “Galos, noites e quintais” (p.55-59), por Joan Edesson de Oliveira; “Na hora do almoço” (p.61- 67), por Gero Camilo; “Paralelas” (p.69-72), por Carmélia Aragão; “Sujeito de sorte” (p.73-77), por Jeff Peixoto; “Todo sujo de batom” (p.79-81), por Xico Sá; “Velha roupa colorida” (p.83-86), por Roberto Maciel. O livro traz ainda uma breve biografia de Belchior (p.93-94), bem como algumas informações sobre cada um dos autores que contribuíram com seus textos (p.88-91). No total, o livro tem noventa e seis páginas.

Dos contos e crônicas que compõem Para Belchior com amor, destacamos especificamente aqueles escritos por Ana Karla Dubiela, Cleudene Aragão e Joan Edesson de Oliveira por terem, a nosso ver, alcançado de maneira medular, o cerne da poesia de Belchior.

A ideia de Ricardo Kelmer é bastante oportuna e louvável, uma vez que a imensidão poética contida na obra poética do autor de “Elegia obscena” precisa ser cada vez mais estudada, discutida e divulgada; como convém ao trabalho dos grandes mestres. Assim, sabendo-se que os pontos de vista acerca da poesia de Belchior não cabem em um livro de noventa e seis páginas, esperamos que a ideia se mantenha e se amplie. Que venha o próximo!

terça-feira, 15 de novembro de 2016

AS PEÇAS DE SAMUEL BECKETT, DE EUGENE WEBB



Ancorado em uma poética do absurdo, o teatro de Samuel Beckett (1906 – 1989) revoluciona grande parte do drama produzido no Ocidente, no período do pós-guerra. Impactante, a obra dramatúrgica beckettiana opta por uma linguagem que privilegia a elipse, o silêncio, o corte e a imobilidade; o que a coloca em oposição ao chamado “teatro convencional”, uma vez que esse se pauta, entre outras coisas, pela ação.

Embora as obras do autor irlandês, no que concerne à sua poesia, contística e romance, sejam consideradas de altíssimo nível literário; são suas peças que nos parecem mais representativas de um período histórico assolado pelo medo, a solidão e o isolamento causados pela constante ameaça de destruição da humanidade, as quais se apresentam como elementos basilares do drama produzido no pós-guerra. Dessa forma, são exemplos da sua produção as peças Esperando Godot (1952), Fim de Partida (1957) e Dias Felizes (1962).

Como não costuma ser muito fácil se iniciar no texto dramatúrgico de Samuel Beckett, o livro As peças de Samuel Beckett (do original The plays of Samuel Beckett, de 1972), de Eugene Webb, apresenta-se como uma alternativa agradavelmente didática de se mergulhar no universo do referido escritor.

O livro foi publicado no ano de 2012, pela editora Realizações, e se insere na Coleção Ensaios, da Biblioteca Teatral. A tradução para o português foi feita por Pedro Sette-Câmara. O trabalho contém catorze capítulos. No primeiro, o autor faz uma introdução na qual discorre sobre Samuel Beckett e a tradição filosófica do Absurdo (p. 13 – 30). Cada um dos doze capítulos seguintes é dedicado a análise de cada uma das peças de Samuel Beckett, numa ordem que basicamente corresponde à sua cronologia de publicação. O livro se inicia com uma nota de agradecimentos (p. 9 – 10), seguida por uma nota do tradutor (p. 11 – 12). O capítulo XIV é denominado por Webb de “Visão Geral, no qual o autor opta por fazer uma espécie de “revisão” dos principais aspectos de cada uma das peças examinadas (p. 161 – 174). Na sequência, tem-se uma “Lista das primeiras montagens” (p. 175 – 176), a bibliografia (p. 177 – 184) e, finalizando, tem-se o índice analítico (p. 178 – 185).

A nota do tradutor tem como objetivo deixar claro que ao longo do trabalho, as peças  serão referidas por seu nome em português. Isso só não ocorrerá quando o autor fizer referências mais específicas. Assim sendo, o capítulo II é dedicado à análise de Esperando Godot (p. 31 – 50); o terceiro a Todos os que caem (p. 51 – 64); o quarto a Fim de Partida (p. 65 – 80); o quinto A última gravação de Krapp (p. 81 – 92) e, na sequência, Cinzas (p. 93 – 104); Duas pantomimas: Ato sem Palavras I e Ato sem Palavras II (p. 105 – 110); Dias Felizes (p. 111 – 124); Letra e Música (p. 125 – 132); Cascando (p. 133 – 138); Trios: Comédia e Vai e Vem (p. 139 – 146); Filme (147 – 156) e Eh Joe (p. 157 – 160).

Sobre Samuel Beckett e sua obra, Webb afirma:

Samuel Beckett conhece bem não só o desespero do homem moderno, mas também a longa história intelectual que desemboca nele. Suas obras contêm referências a filósofos que vão dos pré-socráticos a Heidegger, Sartre e Wittgenstein. Essa extensiva familiaridade com as raízes intelectuais da mente moderna é uma das principais fontes da grande abrangência e da força de Beckett.

Sua obra pode representar o desespero, mas ela não se entrega a ele. O desespero é parte da realidade do nosso tempo, e como artista sincero Beckett teve de ser fiel a essa realidade. Para encontrar um caminho além do absurdo é preciso atravessá-lo. É isso que as peças de Beckett tentam fazer.

Foi provavelmente por isso que Beckett disse em Berlim, em 1967, enquanto se preparava para dirigir uma produção de Fim de Partida, que a maneira de entender seus textos teatrais é falar “não de filosofia, mas de situações”. As peças são explorações do sentido da vida humana em sua realidade plena, e esse sentido não é uma ideia abstrata do tipo que pode ser conhecido objetivamente com o intelecto, mas um mistério vivido com o eu total. Por isso, embora tratem, em parte, de problemas filosóficos, elas estão ainda mais interessada na psicologia – usando esse termo num sentido bastante amplo – de indivíduos concretos. Suas peças tomam situações e perscrutam-nas a fim de revelar a realidade humana que jaz em suas profundezas. (WEBB, 2012)


Posto isso, surge o seguinte questionamento: Como o leitor pode fazer para “se iniciar” no trabalho de Samuel Beckett? Assim como a obra beckettiana não aponta saídas e muito menos dá respostas, o mais importante talvez seja mergulhar nos seus textos, sejam quais forem, e esperar que os caminhos lhe sejam revelados. Caminhos que podem conduzir ao longe ou “apenas” ao labirinto da espera por dias felizes, enquanto o jogo não acaba.


segunda-feira, 31 de outubro de 2016

UM ÚTERO É DO TAMANHO DE UM PUNHO, DE ANGÉLICA FREITAS

Tem-se a impressão (pode ser apenas impressão) de que a poesia brasileira está devendo a nós, leitores, um acontecimento, ou seja, sente-se a falta de trabalhos poéticos de fôlego nas prateleiras das nossas livrarias. Não queremos dizer com isso, que eles não existam, mas que não têm conseguido chegar ao publico leitor da mesma forma como os trabalhos em prosa. É claro que há uma série de questões que explicam por qual razão das coisas se darem como se dão.

Não trataremos dessas questões aqui, mas da poesia que consegue furar o cerco da mesmice editorial e se afirmar enquanto trabalho de altíssima qualidade literária. Nesse caso, falamos especificamente do livro Um útero é do tamanho de um punho (2012), de Angélica Freitas, já na sua terceira reimpressão (2015), pela editora Cosac Naify. Trata-se do seu segundo livro. O primeiro chama-se Rilke Shake, tendo sido publicado pela mesma editora, no ano de 2007. Um útero é do tamanho de um punho já traz na estrutura do título duas referências, que são balizadoras para a compreensão da obra em questão. Embora o tamanho de um útero seja variável, não sendo necessariamente do tamanho de um punho (talvez por essa razão, a poeta tenha usado "um útero" em vez de "o útero").

A imagem do útero, evocada no título do trabalho, aponta para a parte do corpo da mulher, responsável por gestar a própria vida, ou seja, a criação. Nesse caso, vida, criação e poesia se misturam sob o aspecto metafórico do útero. A referência ao punho, por sua vez, pode ser compreendida como indicativo de força e de resistência, principalmente quando apontado para ao alto. Assim sendo, é possível deduzir que resistência e força são naturais e inerentes ao mais íntimo do ser feminino.

Pode-se, inclusive, afirmar que o livro de Angélica Freitas é feminino, na mais ampla acepção do termo, por ter como referência poética a figura da mulher. Melhor seria dizer, das mulheres, uma vez que são inúmeras aquelas que surgem como “eu lírico” nos diversos poemas que compõem a obra. Contudo, deve-se guardar cautela para não cair na armadilha ideológica de achar que se trata de uma poesia panfletária, ativista ou engajada. A poesia de Um útero é do tamanho de um punho permite uma leitura que comporta tudo isso, mas que não se reduz ou se limita a isso ou aquilo, propiciando uma amplitude e uma abertura que podem ser exploradas sob os mais diversos pontos de vista.

O livro está dividido em sete partes. A primeira chama-se “Uma mulher limpa”, composta de catorze poemas. A segunda, “Mulher de”, contém dez poemas, enquanto “A mulher é uma construção” traz sete textos. A quarta parte do livro e que lhe dá nome. Intitula-se “Um útero é do tamanho de um punho”, indo da página 59 até a página 66, o maior poema do livro. Na sequência, as partes: “3 poemas com auxílio do Google”, “Argentina” e “O livro do coração dos trouxas”. Além disso, o livro traz uma nota sobre a autora, bem como uma breve apresentação da obra, de autoria de Carlito Azevedo.

Angélica Freitas
Os trinta e seis poemas que compõem a obra de Angélica Freitas são escritos em forma livre e dialogam, estilisticamente falando, com a poesia de Orides Fontela (1940 - 1998), Paulo Leminski (1944 - 1989) e Ana Cristina Cesar (1952 – 1983). O aspecto contemporâneo da sua poesia é permeado tanto pela ironia, quanto pelo nonsense; o que, a nosso ver, exige atenção redobrada do leitor. Um exemplo do que afirmamos pode ser observado na “brincadeira” que a autora faz ao usar a língua do i, que tem como objetivo trocar todas as vogais por i. Nessa “língua”, Um útero é do tamanho de um punho ficaria Im itiri i di timinhi di im pinhi (p.59). Além desse aspecto formal, a poeta também opta pelo uso de letras minúsculas na composição do seu texto, o que a aproxima de autores como e.e.cumimngs, por exemplo.

Outro aspecto presente nos poemas da referida obra é a recorrência de referências a escritores. Elizabeth Bishop, por exemplo, surge no poema “mulher de posses” (p. 34), quando lemos: “... e se é uma arte perder”. Henry Miller está no poema “Mulher de malandro” (p.40). Homero é referido no poema “Ítaca” (p.50). Borges e Barthes aparecem em “metonímia” (p.52) e Frida Khalo, na página 60. Barthes retorna na página 79. Sheherazade (= She/He+razade) surge na página 88, enquanto Goddard está na página 90.

Além disso, Angélica Freitas usa e abusa de elementos da cultura pop, demonstrando maestria no uso de tais referências. Dessa forma, para citarmos apenas algumas, na página 87, encontramos referências musicais como New Order e Suzanne Vega (Será que a poeta gosta de Luka?). Há ainda quadrinhos, artes plásticas e outras semioses que, aparentemente espalhadas e dispersas, constituem uma enorme rede de significações poéticas, que põem o feminino como leitmotiv da poesia de Um útero é do tamanho de um punho. E isso, por si só, já faz da poesia de Angélica Freitas um acontecimento.

A poesia de Angélica Freitas permite, como qualquer obra literária, um oceano de interpretações. Nossa intenção não era fazer uma leitura equivocada. Mas como diz a poeta (p.52): “... todas as leituras de poesia são equivocadas”. Assim sendo, por qual razão resistir à tentação do equívoco? Boa leitura!

domingo, 16 de outubro de 2016

UM NOBEL PARA O POETA BOB DYLAN

Em diferentes regiões do Brasil se utiliza muito a lexia “demorô”, corruptela de “demorou”, para se referir a situações que, finalmente aconteceram, mas que deveriam ter acontecido bem antes. Embora se trate de uma expressão tipicamente brasileira, provavelmente outras línguas devam ter expressões que sirvam para a mesma situação. E se assim o for, boa parte do mundo disse “demorô”, hoje, quando Sara Daniues, secretária permanente da Academia Sueca, anunciou o nome de Bob Dylan, como o vencedor do prêmio Nobel de Literatura de 2016. Para a referida Academia, o autor de “Like a Rolling Stone” mereceu o prêmio de 2016 “por ter criado uma nova expressão poética dentro da grande tradição norte-americana da canção”.

A Academia sueca poderia ter dito “qualquer coisa”, como justificativa para premiar Dylan, pois tudo o que pudesse dizer resvalaria na constatação do óbvio, uma vez que a obra de Bob Dylan ultrapassa o campo meramente musical, se espalhando pelo campo da literatura propriamente dita. Em outras palavras, é simplório conceber as letras do referido artista como “letras”, simplesmente, pois Bob Dylan é, na verdade, um dos mais relevantes poetas do século XX, destilando sua poesia por meio da canção. Dessa maneira, assim como Chico Buarque e Belchior, Bob Dylan rompe os limites dos gêneros literários, produzindo letras que são menos letras, e mais poemas.

É claro que alguns pesquisadores, engessados que estão (ou “que são”?), ainda não conseguem (ou não querem) compreender as relações que se dão entre a música e a poesia. Para muitos, são coisas que não se pode misturar; sequer aproximar, tendo em vista letra de música ser algo que se encontra em um plano muito inferior ao da poesia. Dessa forma, a premiação de Bob Dylan vem mexer com posicionamentos antigos, sólidos e conservadores a esse respeito. De 2016 em diante, contudo, uma nova maneira de se conceber a poesia passa a ser indispensável, uma vez que Bob Dylan está agora, oficialmente, ao lado de T.S. Eliot, Yeats e Wislawa Szymborska; por exemplo.

Deixemos claro, no entanto, que não é um Nobel para Dylan que o torna um grande poeta. Na verdade, é exatamente o contrário. É a qualidade, o alcance e o reconhecimento da sua obra poética que culminou na premiação. Dylan não precisava de prêmio algum. No entanto, o reconhecimento de Bob Dylan como merecedor do prêmio Nobel de Literatura do ano de 2016 aponta também para uma, mesmo que seja aparente e momentânea, nova perspectiva da Academia sueca em relação a diferentes manifestações da literatura. Talvez fosse o momento do próprio Prêmio se reestruturar e admitir que existem muitas formas de representações artísticas que mereceriam receber um prêmio de tal envergadura, mas que simplesmente não cabem nas categorias estabelecidas pela Academia.

Ao optar por premiar Dylan, a Academia acaba por premiar indiretamente todos os trovadores, repentistas, folk singers, professores e artistas que têm insistido na luta em defesa de uma cultura que possa ser cada vez mais abrangente e inclusiva, independentemente de língua, rótulo ou gênero.

O Nobel para Bob Dylan acaba também por ser uma premiação aos poetas da Geração Beat, aos heróis conhecidos e anônimos da década de 60 e, especialmente, ao poeta e ativista Woody Guthrie, sem o qual, possivelmente, Robert Zimmerman não teria se tornado Bob Dylan. E, como bem afirmou Leonard Cohen: "dar um Nobel ao Bob Dylan é como dar uma medalha ao Everest por ele ser a montanha mais alta da Terra". Melhor dedução, impossível!

O prêmio Nobel para Bob Dylan “demorô”, mas veio. Com ele, o mestre de “Blowin in the Wind” e “The times they are a changing” coroa uma carreira de sucesso, ativismo e poesia que dificilmente veremos surgir nos próximos cem anos. Por essas e outras razões, nos alegramos por Bob Dylan, pois descobrimos, baby Blue, que nem tudo está perdido.

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segunda-feira, 10 de outubro de 2016

O QUE APRENDI SENDO XINGADO NA INTERNET, DE LEONARDO SAKAMOTO

O ato de xingar é tão antigo quanto o ato de respirar, se alimentar ou beber água. O xingamento deve existir desde que o ser humano colocou os pés nesse planeta. Houve um tempo, inclusive, que xingar alguém foi considerado coisa comum, normal. “Normal”, é claro, do ponto de vista de quem xinga, pois para quem é xingado nada tem de “normal”, muito menos de aceitável. Houve também um tempo em que os xingados, geralmente as minorias, não tinham o direito de reclamar, nem que fosse apenas ao bispo (talvez fossem até xingados de novo), pois minoria tinha ficar calada e baixar a cabeça para tudo e para todos. Ainda bem, que não é mais assim.

Os tempos estão em constante mutação, como bem afirma Bob Dylan. Dessa forma, o que “há algum tempo era jovem e novo, hoje é antigo” e, como bem diz o poeta Belchior: “precisamos todos rejuvenescer”. Não rejuvenescer no corpo apenas, mas nas nossas cabeças e nos nossos corações, tendo em vista que existem inúmeros jovens, que são velhos de dar dó; enquanto muitos velhos são maravilhosamente jovens. Precisamos todos rejuvenescer, principalmente naquilo que diz respeito às nossas velhas opiniões formadas sobre tudo. Precisamos abrir nossas janelas da alma, para que somente dessa maneira consigamos ver a beleza da diversidade da qual se constitui o outro. Enquanto não conseguirmos colocar isso em prática, chafurdaremos eternamente na lama da nossa hipocrisia e na ignorância dos nossos preconceitos. Afinal, com bem afirma Sakamoto (2016:157), a ignorância é realmente um lugar quentinho.

E é sobre a estupidez humana, o prazer de xingar e destilar ódio por meio da Internet, entre outros assuntos, que trata o livro O que aprendi sendo xingado na Internet (2016), de Leonardo Sakamoto. O livro em questão foi publicado pela editora Leya e traz uma seleção de algumas das melhores crônicas escritas por Sakamoto, sendo algumas já publicadas em seu próprio blog. O livro tem cento e sessenta páginas e está organizado em doze partes, que se sucedem da seguinte forma: “Todos nós somos responsáveis” (p. 7-11), “O outro é um ilustre desconhecido” (p. 13- 26), “Somos educados a tomar partido” (p. 27-50), “Jornalistas não são jornalistas, leitores não são leitores” (p. 51-70), “Falta amor no mundo” (p. 71-88), “Falta interpretação de texto” (p. 89-104), “Falta Lexotan na água desse povo” (p. 105-116), “Boatos são eternos” (p.117-132), “Mais vale um tuíte atrasado do que um post mal apurado” (p. 133-146), “Odiar é fácil. Difícil é dialogar” (p. 141-146), “Por que devemos continuar resistindo” (p. 147-154) e “Epílogo” (p. 155- 158). O livro conta ainda com uma breve apresentação de Gregório Duvivier e abre com uma charge da Laerte.

Sakamoto procurou organizar o livro, reunindo sob títulos abrangentes, aquelas crônicas que, de alguma forma, mantivessem aproximações temáticas. Dessa forma, O que aprendi sendo xingado na Internet não tem como objetivo dar a palavra final sobre nenhum dos assuntos ali tratados, mas propor questionamentos e discussões acerca do atual clima de ódio que se destila nas redes sociais, a partir da situação sócio-política do Brasil, para que nós, leitores, não nos tornemos massa de manobra na rede.

A formação acadêmica e a experiência profissional de Leonardo Sakamoto permitem que ele discorra sobre os mais delicados assuntos, de forma bastante leve, como se exige de uma boa crônica. Não é, no entanto, a leveza do seu texto que o impede de meter o dedo na ferida da incompreensão, questionando, o tempo todo, a necessidade que sentem alguns em defender o indefensável, tentando empurrar goela abaixo dos incautos e desavisados uma visão de história e de política, que não condiz com a realidade da maioria, mas de uns poucos escolhidos. Através dos seus textos, o autor sempre apresenta mais de uma maneira de compreensão para um mesmo tema, desconsiderando completamente a possibilidade de defesa e manutenção de uma história única. Para tanto, um dos recursos mais eficazes observados na sua escrita é o uso da ironia, à qual recorre com bastante freqüência, usando-a na medida certa.

Leonardo Sakamoto
Os textos que compõem o livro em questão são resultados das preocupações do autor em relação às questões que dizem respeito à situação sócio-política do Brasil, assim como o comportamento dos internautas no que concerne às opiniões que emitem no ambiente virtual. Como há, na Internet, uma sensação de invisibilidade e, consequentemente, uma sensação de impunidade no que concerne ao que se diz nas redes sociais; as pessoas que tomam posicionamentos e mostram seus rostos, provando que existem na vida real e que pensam de maneira livre, acabam por se tornarem alvos fáceis para a imensa massa de agressores virtuais dispostos a impor seus dogmas, atacando aqueles que questionam ou, simplesmente, mostram que nada é absoluto.


Sakamoto é uma dessas figuras que carregam um alvo nas costas. E embora determinados xingamentos tenham deixado a Internet e o busquem pelas ruas, o autor não tem se deixado abater por questões tacanhas, defendo sempre o diálogo como forma de se chegar a um denominador comum. É claro que o fascismo que invade a web e bate na nossa porta não reconhece o outro e, consequentemente, ignora a importância de se dialogar. Por isso mesmo, toda e qualquer pessoa que passou, passe ou pretenda passar pelo menos perto de um computador tem a urgentíssima necessidade de se debruçar sobre os textos deste livro de Leonardo Sakamoto, como forma de apreender as maneiras mais básicas e elementares de sobreviver à Internet, o que também, sem dúvida alguma, o tornará uma pessoa melhor.

Leia também:

http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br


quarta-feira, 14 de setembro de 2016

TODOS SE VÃO, DE WENDY GUERRA

Wendy Guerra
Alejo Carpentier, Guillermo Cabrera Infante, Reinaldo Arenas, Pedro Juan Gutiérrez e Leonardo Padura são alguns dos autores da literatura cubana, que são possíveis de serem encontrados nas livrarias e sebos do Brasil. Nem todos, infelizmente, habitam as prateleiras das nossas universidades; o que não causa surpresa, uma vez que até determinados autores nacionais, como Carolina de Jesus, por exemplo, ainda são invisíveis para muitos dos nossos leitores.

E se voltarmos os olhos para as escritoras cubanas, muito pouco ou quase nada se conhece por aqui. Não que elas não existam, mas que por inúmeras razões sua literatura ainda não chega ao Brasil como, por exemplo, já chegaram autoras como a moçambicana Paulina Chiziane.

Se há uma culpa em tudo isso, certamente que não está nas autoras e, muito menos nos leitores; mas nos imbróglios políticos e culturais que acabam por barrar pesquisas, censurar obras e tornar artistas invisíveis. Mas, como disse o líder dos Rolling Stones em recente show em Havana: “os tempos estão mudando”. E como estão! A própria presença dos “Rolling”, que é como os cubanos chamam a banda de Keith Richards, na ilha, já é uma prova de algumas dessas mudanças. É claro que essas “mudanças” são tanto aceitas quanto rechaçadas, não constituindo unanimidade entre o povo cubano. Mas se o povo cubano curtiu o show dos Rolling Stones tanto quanto eu curti em São Paulo, não há dúvida de que foi um momento mágico, quase surreal, um acontecimento histórico. Entre muitos que foram (ou que disseram que iriam), a imprensa deu certo destaque para a escritora Wendy Guerra, autora de uma prosa das mais relevantes produzidas atualmente em Cuba.

O primeiro romance de Wendy Guerra chama-se Todos se vão, de 2006, publicado no Brasil no ano de 2011. Além desse, também nos chama a atenção as narrativas Nunca fui primeira-dama (2008) e Posar nua em Havana (2011), publicados no Brasil, respectivamente, nos anos de 2010 e 2012. Os dois primeiros foram traduzidos por Josely Vianna Baptista, enquanto a tradução do terceiro foi feita por José Rubens Siqueira. Os três livros em questão foram publicados pelo selo Benvirá. No ano de 2013, Guerra publicou pela editora Anagrama o livro Negra, ainda sem tradução para o português brasileiro.

Wendy Guerra, embora traduzida para vários outros idiomas, ainda é uma “famosa desconhecida” no seu próprio país, onde sua obra ainda está vetada. Conforme suas próprias palavras: “lá, sou um personagem de ficção”. Foi o que afirmou a autora quando esteve no Brasil, para participar da Festa Literária Internacional de Parati, FLIP, no ano de 2010.

O hábito de escrever diários na infância, acabou contribuindo para que Wendy Guerra recorresse a esse gênero de escrita como forma de estruturar algumas das suas narrativas, como é o caso do romance Todos se vão; narrativa que pode muito bem ser compreendida como uma espécie de microcosmo de uma situação mais ampla, naquilo que diz respeito às questões de organização política e social, bem como de comportamento e relações entre as pessoas. Seria o universo da personagem Nieve uma alegoria da Cuba de Wendy? Como se assumir em uma sociedade na qual as opções de vida se resumem a ter que “atirar bem” ou “fugir”, correndo o risco de passar pela humilhação dos chamados “atos de repúdio”? Embora o cenário político-social descrito pela personagem Nieve seja de causar indignação e terror, ele não se diferencia em muito daquilo que ocorre na realidade, em outros países, como o Brasil, por exemplo.  



Todos se vão pode, como toda obra literária, ser lido por diferentes perspectivas, inclusive podendo ser considerado um livro de caráter feminista, uma vez que a força e a determinação de Nieve não se mostram em consonância com o que indica a fragilidade do termo “neve”, mas com a fortaleza que habita cada mulher que, frente as pressões impostas pela sociedade, se agigantam a cada novo embate pela liberdade, pela vida. Essa característica da personagem talvez seja resultado das leituras da autora que, entre outras, cresceu lendo Marguerite Duras e Marguerite Yourcenar.

Se todo grande escritor tem preocupações e acalenta sonhos, o de Wendy Guerra é provavelmente, registrar, na sua literatura, o sentimento humano. Mesmo o constrangimento absoluto do silêncio do seu país em relação ao seu trabalho não a faz menor. E já que “não existe” mesmo em Cuba, Wendy vai vivendo sua vida e as mais outras vidas que desejar, em outros mundos, em novas obras; pois bem sabe ela que de uma forma ou outra, mais cedo ou mais tarde, todos se vão. E o que restará? A memória, os registros, a história e as palavras. Nada mais.

quarta-feira, 7 de setembro de 2016

UIVO - GRAPHIC NOVEL

A permanência de um texto literário  ao longo do tempo se dá como resultado da qualidade do próprio texto, assim como o impacto que causa no leitor.  Não é preciso "divagar" muito para se deduzir que é isso o que acontece como o poema Uivo (1956), de Allen Ginsberg (1926 - 1997). Trata-se de um texto de extrema qualidade poética, que beira o profético ao apontar sua metralhadora giratória da palavra em direção à sociedade excludente norte-americana. Certamente que ninguém aponta um poema para o coração do sistema, e sai impunemente. As sucessivas tentativas de censura e criminalização não forma suficientes para impedir que Uivo se tornasse um dos poemas mais lidos do século XX. E não nos parece exagero afirmar, que continuará sendo lido por seguidas gerações por todo o século XXI  e enquanto existir um leitor e um texto.

Os textos dos autores da Geração Beat não foram concebidos para caber bonitinhos na forma tradicional do livro. Os beatniks sabiam que nem eles, nem suas obras nasceram para se tornar peças canônicas de uma estrutura literária limitada. Os avanços tecnológicos e as inúmeras propostas multimodais surgidas a partir deles possibilitaram um gama de inovações que facilitaram a apresentação de um texto literário, pensado antigamente para caber no livro impresso, em diversos outros suportes e abordagens. Daí, um poema como Uivo, poder ser disponibilizado em formato de longa-metragem ou de graphic novel, por exemplo.

E é isso que faz Eric Drooker ao criar os quadros da animação do longa Uivo (2010)dirigido por Rob Epstein e Jeffrey Friedman, tendo sido publicado no Brasil, como graphic novel, no ano de 2012, pela editora Globo, tendo sido traduzido por Luis Dolhnikoff. A  graphic novel de Drooker traz uma introdução, seguida dos capítulos "Quem" (I), "Moloch" (II), "Rockland" (III) e "Nota de rodapé a Uivo" (IV); além de notas de tradução (p. 220 - 221) e agradecimentos do autor aos que contribuíram com o trabalho (p.222).  Eric Drooker já havia colaborado com Ginsberg no livro Illuminated Poems (1996). Fotos de Ginsberg e Drooker ilustram a primeira contracapa (foto de Ken Taranto), a página 223 ( foto de Denise Keim) e a segunda contracapa (foto de Steven Taylor).

Sobre Allen Ginsberg, convém ressaltarmos o que afirma Bob Dylan, quando diz: "Ginsberg é ao mesmo tempo trágico e enérgico, um gênio lírico e um antagonista extraordinário, provavelmente a maior influência individual na dicção poética norte-americana desde Whitman". Tá dito.

A graphic novel, de Eric Drooker não é ambiciosa e, certamente deixa escapar muito da caudalosidade poética do autor de A balada dos esqueletos (1995). Contudo, o autor sabe muito bem da árdua tarefa que seria dar conta de um texto que é só lâmina. Sua leitura, no entanto, contribui para que, posto no suporte da graphic novel, o poema de Ginsberg possa alcançar outro tipo de leitor, se perpetuando assim, atemporalmente.

Para saber mais:

http://www.drooker.com/graphic-novels 

https://en.wikipedia.org/wiki/Allen_Ginsberg


quarta-feira, 31 de agosto de 2016

A RESISTÊNCIA AO GOLPE DE 2016

O dicionário Aurélio, edição de 2010, define golpe de estado como “subversão da ordem constitucional e tomada de poder por indivíduo ou grupo de certo modo ligados à máquina do Estado” (p.1040). Embora o Aurélio ainda não tenha acordado para a necessidade de rever conceitos como cigano, homem, negro, judeu e mulher; por exemplo, nos parece bastante acertada sua definição para a lexia “golpe”.

A definição observada no dicionário em questão, embora muitos insistam em dizer o contrário, deixa bastante claro que a deposição da presidenta Dilma Rousseff, no Brasil de 2016, constitui, sim, um golpe de estado, embora determinados membros dos diferentes poderes da República assumam o discurso insustentável de que o processo de impeachment está devidamente reconhecido na Constituição Federal. Quanto a isso não se pode discordar. Contudo, o modus operandi utilizado por parlamentares corruptos e indiciados criminalmente, para depor a presidenta eleita por mais de cinquenta e quatro milhões de votos, não apenas macula a Constituição, como  macula própria República.

O golpe de estado ocorrido no Brasil de 2016 não é criação tupiniquim. O mesmo tipo de golpe já havia ocorrido em Honduras e no Paraguai. Os donos do poder perceberam que soldados, tanques e baionetas não são mais necessários para se perpetrar golpes contra a democracia. No entanto, instrumentos de repressão e cerceamento, como conduções coercitivas, prisões ilegais, linchamentos morais e torturas psicológicas nada deixam a dever às práticas dos velhos porões da época da ditadura civil-militar, que aterrorizou o país de 1964 a 1985. Embora hoje os agentes sejam outros, os financiadores são os mesmos de ontem. Dessa forma, os golpistas de 2016 são membros do judiciário, grandes empresários, conglomerados de mídia e todos aqueles políticos insatisfeitos com as mudanças efetivadas por sucessivos governos ditos de esquerda, indesejáveis para uma elite que não suporta ver os membros das classes mais pobres ascendendo socialmente. E como não conseguem vencer democraticamente, nas urnas, resta-lhes então, a vil cretinice do golpe.


Há a retórica vazia daqueles que insistem em afirmar que as instituições continuam em pleno funcionamento. Ora, afirmar isso é tão absurdo quanto afirmar que “todos são iguais perante a lei”; o que também está lá, bela e recatadamente, na Constituição Federal. O golpe no mandato da presidenta Dilma Rousseff não é somente um golpe no mandato da presidenta Dilma Rousseff. É, na verdade, um duro golpe na jovem, porém frágil e cambaleante democracia brasileira que, a duras penas, levará muito tempo para se erguer e encontrar seu caminho rumo a sabe-se lá onde.

Por mais que os golpistas se esforcem para negar e esconder o golpe (muitos deles, na verdade, até se orgulham), o mundo entendeu que, no Brasil de 2016, o golpe é, sim, um golpe. Cientistas e intelectuais como Habermas e Chomsky já o disseram. A imprensa internacional, por sua vez, bem como as redes sociais também não deixam esquecer que a democracia brasileira ruiu. E, mesmo timidamente, já começam a surgir publicações editoriais que manterão na história a tomada de poder levada a cabo pela ferocidade das forças  reacionárias da sociedade brasileira.

Nesse sentido, destacamos a publicação do livro A resistência ao golpe de 2016, organizado por Carol Proner, Gisele Cittadino, Marcio Tenenbaum e Wilson Ramos Filho, pela editora Canal 6, em parceria com o Projeto Editorial Praxis e o Instituto Defesa da Classe Trabalhadora. A publicação é de 2016 e conta com cento e três trabalhos, entre artigos e entrevistas, que discorrem acerca dos vários fios que constituem o novelo do golpe de 2016. A apresentação da obra é feita por Gisele Cittadino e, entre os vários autores, tem-se nomes como Aderbal Freire Filho, Leonardo Boff, Guilherme Boulos, Jandira Feghali, Moniz Bandeira, Miguel do Rosário, Roberto Amaral, Rubens Casara, Tarso Genro, Wadih Damous, Luiz Nassif e Mariana Souza Pereira.

O livro é bastante oportuno, uma vez, que se constitui como registro de um dos mais tristes momentos da história do Brasil (para alguns analistas, mais triste, inclusive, do que os anos de chumbo), quando o golpe parlamentar empurra o país para o abismo da ignorância, do retrocesso, do radicalismo e da intransigência e do obscurantismo; resultado um verdadeiro ataque fascista aos direitos do povo e à democracia brasileira.

Destarte, a leitura de A resistência ao golpe de 2016 se faz urgentemente necessária como forma de compreensão das causas que levaram ao golpe, os agentes envolvidos na sua elaboração e manutenção; assim como nos permite ter uma ideia dos resultados, nada animadores, daquilo que ainda está por vir.

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Link da editora: http://www.canal6editora.com.br/a-resistencia-ao-golpe-de-2016.html

sexta-feira, 26 de agosto de 2016

KEITH RICHARDS: UMA VIDA ROCK 'N' ROLL


Keith Richards é uma das figuras mais importantes do século XX! É claro que afirmamos isso a partir do nosso ponto de vista, pois, para alguns (ou para muitos?), ele pode não ter nenhuma importância. Assim como para outros, também não têm importância Salvador Dalí, Pablo Picasso, Frida Khalo, Nelson Mandela ou Usain Bolt; por exemplo. Na verdade, todo ser humano, cada um a seu modo, é importante enquanto elemento constituinte da diversidade que compõe a vida no planeta Terra.

Alguns, como aqueles acima citados, acabam por se destacar de maneira a deixar seus nomes registrados na história da humanidade, fazendo o que melhor aprenderam e repassando esse aprendizado para as gerações posteriores. Certamente que nem sempre essas “gerações posteriores” conseguem perceber a dimensão humana de algumas dessas personagens, o que as torna muitas vezes, “invisíveis” a esses lassos e rasos olhos.

Aqueles que conseguem enxergar para além das falésias da mediocridade, compreendem a relevância de Keith Richards para a cultura do século XX. Se sua influência se manterá ao longo do século XXI, ainda é muito cedo para afirmar. Contudo, não é errado dizer que, enquanto se pretender falar de música, especificamente sobre o Rock, a história não estará completa se não se falar nos Rolling Stones e, obrigatoriamente, em Keith Richards.

O lendário guitarrista dos Rolling Stones parece não se render a determinadas conveniências, pois, como ele mesmo afirma em “Under the Influence” (2015), documentário dirigido por Morgan Neville, sempre esteve mais para o “Roll” do que para o “Rock”, o que, convenhamos, tem sido ao longo da vida e da carreira, sua identidade.

E é um panorama da história do homem-mito Keith Richard que nos é apresentado no livro Keith Richards: Uma vida rock’n’roll, publicado no Brasil no ano de 2013, pela Ediouro. Publicada originalmente em 2012 por Edizione White Star, a referida edição, de 207 páginas, traz o texto de Bill Milkowski, com tradução para o português brasileiro de Luis Fragoso. A edição é de Valéria Manferto de Fabrianis, enquanto o projeto gráfico ficou por conta de Paola Piacco.

Trata-se de uma belíssima edição de capa dura, ricamente ilustrada com fotos do artista ainda bebê (p.14) até os dias atuais; devidamente organizada em quatro partes, a saber: “Introdução - A importância de ser Keef” (p. 6-12); “Os anos iniciais – O garoto de Dartford encontra satisfação” (p. 13 – 44); “Na estrada com os Stones – Sucesso e encrencas pelo caminho” (p. 45 – 118) e “Uma vida dedicada ao Rock ‘n’ Roll – Depois de tantos anos, ainda nos riffs” (p. 119 – 205).

No que diz respeito ao conteúdo, quando se trata de uma figura como Keith Richards, é muito difícil não ser repetitivo, tendo em vista que determinadas informações sobre ele são indispensáveis em qualquer publicação que se pretenda minimamente abrangente. 

Assim sendo, (re)encontramos coisas como: “Keith Richards é o 4º entre os cem melhores guitarristas de todos os tempos” (p.6); e que o guitarrista não tem “nenhuma pretensão de ser imortal” (p.6), o que é engraçado, uma vez que já o é, por ser herdeiro da tradição R&B, de Howlin’ Wolf, Muddy Waters e Chuck Berry. Sobre isso, Richards afirma: “Chuck herdou isso de T-Bone Walker; eu herdei isso de Chuck, Muddy Waters, Elmore James e B. B. King. Todos nós somos membros de uma família que remonta a milhares de anos atrás. E estamos passando isso adiante” (p.8).


Além de Keith Richards: uma vida rock ‘n’ roll, sugerimos também a leitura de Vida, (2010), biografia escrita em parceria com James Fox; Traduzido por Maria Silvia Mourão, Mário Fernandes e Renato Rezende e publicada no Brasil pela editora Globo. Leituras concluídas, definitivamente não restarão dúvidas sobre a importância de ser Keef Richards.

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Veja também:


Keith Richards: Under The Influence trailer > https://www.youtube.com/watch?v=NHh24Y9LrY0

segunda-feira, 22 de agosto de 2016

XVIII PRÊMIO IDEAL DE LITERATURA - PRÊMIO BARROS PINHO

Muito se tem falado a respeito do desaparecimento do livro. No trabalho intitulado Não contem com o fim do livro  (2010), publicado pela editora Record, com tradução de André Telles, Jean-Philippe de Tonnac é o responsável por coordenar uma conversa a esse respeito, entre Umberto Eco e Jean-Claude Carrière. No bate-papo, os dois grandes autores falam do papiro ao arquivo eletrônico, abordando os cinco mil anos da história do livro, culminando no óbvio, ou seja, que as revoluções tecnológicas não acabarão com o livro. 

Recorro ao Não contem com o fim do livro, com o intuito de  apontar que embora o livro, tal qual o conhecemos hoje, esteja assumindo uma outra forma de suporte, está longe de deixar de existir. Uma prova do que afirmo é que nunca se publicou tanto mundo afora. Dentre os vários tipos de publicações, pululam por todo o Brasil, coletâneas, antologias e premiações diversas; o que acabam por impulsionar o mercado editorial, assim como dar certo destaque para novos autores. Sabemos, no entanto, que não basta publicar sem que haja um plano de divulgação, principalmente para aqueles autores que não são "grandes" ou que não são indicados por aqueles que já são "grandes". Ser um novo escritor em um país onde ainda se lê muito pouco e no qual as editoras se agarram com unhas e dentes à mesmice, ou ainda onde os clássicos não lêm os contemporâneos, nem os contemporâneos lêm os clássicos,  fica tudo muito complicado.

Alguns autores têm conseguido se destacar, quando são agraciado em premiações literárias, principalmente naquelas de relevância nacional. Muitas vezes, no entanto, as premiações se resumem à uma edição tímida e, quando envolve dinheiro, a soma é mais tímida ainda. Seria de muito bom tom que esse tipo de premiação passasse por uma repaginada, deixando de ser apenas mais uma atividade social  na agenda de um Clube, de uma associação ou de uma universidade, por exemplo, passando a ser algo de caráter mais relevante. 

Essa  questão me vem à mente, enquanto leio a mais recente edição do Prêmio Ideal de Literatura, um dos prêmios mais prestigiados no meio literário cearense. A edição em questão, de 2016, foi dedicada à poesia e recebeu o nome de "Prêmio Barros Pinho", consistindo em uma homenagem ao poeta recentemente falecido. O grande vencedor da edição deste ano foi o poeta Felipe de Abreu Fortaleza, com o poema intitulado "Somente a vida" (p. 31 - 32) . Além do primeiro colocado, quinze poetas foram agraciados com menção honrosa e trinta e três como destaques.

A comissão julgadora do referido Prêmio foi composta pelos poetas Regine Limaverde, Dimas Carvalho e Hermínia Lima. A consultoria ficou sob a responsabilidade da poetisa Aíla Sampaio, enquanto a coordenação foi feita pelo poeta, membro da Academia Cearense de Letras, Carlos Augusto Viana. A edição do XVIII Prêmio Ideal de Literatura já está devidamente publicada e em circulação. 

Embora ainda engessadas, tais premiações são necessárias para que se mantenha certa movimentação cultural, especificamente literária, nas cidades do país. Dessa forma, é possível provocar diálogos entre escritores  municipais, estaduais e federais, sem a preocupação de se saber quem tira ou deixa de tirar ouro do nariz.









segunda-feira, 15 de agosto de 2016

SONO, DE HARUKI MURAKAMI

Diferentemente de Gregor Samsa, que acorda de sonhos intranquilos, a personagem do conto Sono (2015), de Haruki Murakami, vive seus sonhos intranquilos devidamente acordada, uma vez que há dias não consegue dormir. E o conto se inicia com a narradora dizendo: "É o décimo sétimo dia em que não consigo dormir" (p.5). 

Sono, Nemuri, no original japonês, é um conto longo, de autoria do celebrado autor japonês Haruki Murakami, publicado no Brasil no ano de 2015, pela editora Objetiva, sob o selo da Alfaguara, com tradução de Lica Hashimoto e ilustrações de Kate Menschik. Com cento e dezesseis páginas, por pouco o conto não descamba para uma novela. Mas Murakami sabe muito bem o que faz, e assim mantém sua narrativa curta sob  controle, não permitindo que ela se alongue para além das dimensões e objetividades requeridas na construção de um conto.

Casada com um homem de rosto "esquisito", mãe de um garotinho, proprietária de um Honda City usado e dedicada a esporádicas braçadas na piscina do clube. É assim que o leitor é apresentado à personagem principal do conto Sono.Não há nada de errado com a personagem, a não ser o fato de não conseguir dormir. Diz ela: "Meu marido e meu filho nem sequer desconfiam que estou há dezessete dias sem dormir. Eu também não lhes disse nada" (p.12). Embora o leitor seja levado a crer que o problema da personagem seja a insônia; assim como o rosto do seu marido, a situação da personagem é tanto esquisita, quanto inqualificável. 

A leitura do conto de Murakami acaba por nos empurrar em direção à outra narrativa curta. Nesse caso, Bliss, da neozelandesa Katherine Mansfield (1888 - 1923), o que nos faz observar alguns pontos de aproximação entre ambas. Assim sendo, vejamos: A personagem de Murakami não tem nome, mas podemos ver que guarda inúmeras semelhanças e aproximações com a Bertha Young, do conto de Mansfield. Bertha tem marido e filho e, tal qual a personagem do conto em questão, parece viver num universo paralelo, indo e vindo de uma dimensão à outra. Certamente que tais similitudes não ocorrem por acaso e, muitas vezes, tem-se a impressão de que o conto de Murakami é uma narrativa dentro de outra narrativa, tendo uma personagem sem nome, "brincando" de ser Bertha Young. As semelhanças não param por aí, havendo outras pistas deixadas pelo autor ao longo do  texto. Talvez não seja à toa que a personagem de Sono tenha cursado letras - inglês na faculdade, apresentando uma monografia de conclusão de curso sobre Katherine Mansfield (p.48). 

Bliss se conclui com Bertha Young parada, em estado de contemplação, observando uma pereira em flor. Em Murakami, a personagem diz: "Quando dei por mim, eu observava uma árvore através da janela" (p.56). Mas em Sono, isso não é o fim, mas uma indicação de um rápido estado de fuga dentro de outros estados de fuga e sonolência vivenciados pela personagem. Diz ela: "Esse estado de indefinida sonolência persistia o dia todo. Minha mente estava enevoada. Era incapaz de discernir corretamente a distância, o peso e a textura dos objetos. A sensação era de que sem avisar a minha consciência se dissociava do corpo. O mundo ondulava isento de sons" (p.7). De um momento para o outro, no entanto, a personagem não consegue mais dormir e, assim, sua vida assume uma outra dinâmica, um outro sentido.

Nas noites insones, enquanto todos dormem, a personagem descobre o prazer de ler Anna Karenina (1817), acompanhada de generosas doses de conhaque. "Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira"; dizem as primeiras linhas do romance de Tolstoi (1828 - 1910). Mas por qual razão essas palavras soaram tão forte aos ouvidos da narradora? Teria ela pensado no seu marido e no seu filho como exemplos de uma família (in)feliz? E o que dizer da semelhança de sua família com a de Bertha Young? Anna Karenina seguirá com a narradora por noites (e dias) a fio numa relação quase simbiôntica até o surpreendente desfecho da narrativa. 

Sono (2015), assim como Norwegian Wood (2008) e as demais obras de Murakami são como "pequenas" peças de um  imenso e respeitável work in progress literário capaz de abarcar as mais variadas temáticas, compondo um amplo leque de possíveis leituras e interpretações a partir da abertura proposta por suas narrativas, sejam elas longas ou curtas, as quais se mostram sempre em consonância com os mais profundos questionamentos do ser humano acerca da vida e da morte ou "apenas" das banalidades insólitas do cotidiano, a partir do ponto de vista de uma personagem que não consegue dormir.

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

GRATIDÃO, DE OLIVER SACKS

Nenhum livro é grande por apenas ser um livro grande, mas por ser um grande livro. Trato aqui, obviamente, de qualidade e não de quantidade. Às vezes se escreve tanto, mas não se diz nada. Outras vezes, um universo é dito em tão poucas palavras. É claro que há a necessidade da dedicação aliada ao talento, que por sua vez precisa estar em consonância com a sensibilidade e com a percepção de tudo aquilo que nos circunda.

No dia a dia, costumamos desejar, cobrar e reclamar de uma pá de coisas. No entanto, raramente, somos impelidos a agradecer. A gratidão tem sido substantivo subutilizado, quando não ignorado, no universo lexical das nossas conversações. Em tempos líquidos, de comportamentos e pré-conceitos cada vez mais sólidos e tacanhos, a leitura de Gratidão (2015), de Oliver Sacks se impõe como uma daquelas leituras que não se podem guardar na cabeceira, em uma mesa ou uma prateleira que seja, por tempos sem fim. O "livrinho" de Sacks é daqueles grandes livros que nos provocakm a partir de cada uma das palavras milimetricamente pensadas para estarem exatamente onde estão, causando o impacto que faz do leitor, não mais o mesmo, mas outro.

O livro de Sacks (1933 - 2015), publicado no Brasil pela Companhia das Letras, com tradução de Laura Teixeira Motta (o título original é Gratitude), é composto de quatro textos que muito se aproximam do ensaio, mas que não o são na sua totalidade, tendo em vista o teor informal que os permeia. Certamente que essa questão de forma não era nem de longe a preocupação de Sacks ao se dedicar a escrever tais textos. Sua intenção, claro, era estabelecer um diálogo com a vida e com o estar-no-mundo. Estar no mundo que ele estava deixando, consumido por uma doença que o impedia de seguir. Isso é notório, quando a epígrafe escolhida para abrir o livro diz: "Agora estou face a face com a morte, mas isso não quer dizer que não quero mais nada com a vida". Os textos são "Mercúrio" (p.13 - 22), "My own life" (p. 23 - 30), "Minha tabela periódica" (p. 31 - 42) e "Shabat" (p. 43 - 60). Além dos quatro textos, a edição em questão também traz um prefácio escrito por Kate Edgar e Bill Hayes (p.9 - 11), assim como notas sobre o autor (p. 61) e algumas fotos ao logo do livro.

Os textos constantes na edição brasileira foram originalmente publicados no jornal The New York Times, como "The Joy of My Old Age" (06/07/13), "My Own Life" (19/02/15), "My Periodic Table" (24/07/15) e "Sabbath" (14/08/15). Os artigos dos quais tratamos aqui constituem os últimos escritos de Oliver Sacks, uma vez que o referido autor faleceu no final do mês de agosto de 2015. Nesses escritos, o autor discorre sobre a vida, a morte, a velhice e a doença de uma maneira pra lá de extraordinária. 

Em sua corrida contra o relógio, Sacks escreve com a determinação de quem já não tem mais nenhum tempo. "Sabbath", seu último texto foi publicado no dia 14 de agosto de 2015. Sacks morre no dia 30. Se há algo que une os últimos  textos de Oliver Sacks é exatamente a gratidão.


Em "My Own Life", ele diz: "Não consigo fingir que não estou com medo. Mas meu sentimento predominante é de gratidão. Amei e fui amado, recebi muito e dei algo em troca, li, viajei, pensei, escrevi. Tive meu intercurso com o mundo, o intercurso especial dos escritores e leitores. Acima de tudo, fui um ser senciente, um animal que pensa, neste belo planeta, e só isso já é um enorme privilégio e uma aventura" (p. 30).

"Sabbath", por sua vez, é tanto revelador quanto redentor. Ao concluir o texto, no auge do falecimento de suas forças, diz:
"E agora fraco, sem fôlego, os músculos antes firmes derretidos pelo câncer, encontro meus pensamentos cada vez mais, não no que se quer dizer com levar uma vida boa, que valha a pena - alcançar a sensação de paz dentro de si mesmo. Encontro meus pensamentos rumando em direção ao Shabat, o dia de descanso, o sétimo dia da semana, e talvez o sétimo dia da nossa vida também, quando podemos sentir que nosso trabalho está feito e, com a consciência em paz, descansar" (p. 58).
Os textos de Oliver Sacks, constituintes de Gratidão, são de caráter universal por abordarem questões que não são apenas do homem Oliver Sacks, mas de todo e qualquer homem em sintonia com o seu tempo, espaço e consciência da finitude da vida. Dessa forma, também se mostram perenes e atemporais pelo conteúdos e provocações que podem causar no leitor, independentemente da época da  qual seja sujeito.